Dom Moacir diz que consultaria a medicina para decidir sobre o caso da menina grávida
Que pastor extraordinário é o arcebispo de Porto Velho dom Moacir Grechi! Na hipótese de que a providência o tivesse confrontado diretamente com o episódio da interrupção da gravidez da menina de nove anos, gestante de gêmeos após ser estuprada pelo padrasto, em Recife (PE), antes de tomar qualquer atitude em relação à mãe da criança e às pessoas envolvidas com a operação, teria consultado a ciência, buscando informações junto a especialistas de áreas médicas afetas à obstetrícia e à pediatria de modo a se inteirar de todas as implicações do caso.
Como se sabe, assim que tomou conhecimento de que o aborto fora realizado, o arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, excomungou a mãe da criança e todas as pessoas enredadas na ocorrência (equipe médica, dirigentes de ONGs que providenciaram os cuidados médicos/legais e autoridades judiciárias que autorizaram o procedimento), exceto a menina. “Para incorrer nessa penalidade eclesiástica, é preciso maioridade. A Igreja, então, é muito benévola, quer dizer, sobretudo, com as pessoas de menor”, disse dom José.
Com uma estridência poucas vezes observada, a repercussão do episódio ecoou pelo mundo inteiro, menos pela hedionda violência e repulsivos aspectos morais aí envolvidos e mais, muito mais, pelo claro viés de intolerância religiosa representada pela condenação das pessoas que tentaram corrigir as seqüelas do estupro. Aí incluídos, na menos catastrófica das hipóteses, os inevitáveis danos físicos (decorrentes de uma gravidez gemelar num aparelho reprodutor ainda não inteiramente desenvolvido) e mentais (provenientes dos transtornos emocionais de uma criança ainda sem a mínima noção da maternidade). E na conjetura extremada, o muitíssimo provável sacrifício de três vidas.
O comentário do arcebispo porto-velhense dificilmente poderia ter-se dado num ambiente mais apropriado – num auditório (do Colégio Maria Auxiliadora) repleto de professores e estudantes de Filosofia e Teologia, além de religiosos vários.
2 – MÍDIA PERVERSA
Na verdade, o assunto veio à tona durante um debate em que se tentava estabelecer um diálogo entre a ciência e a religião, entre fé e razão, tendo como tema “São Paulo e Darwin: Os Limites da Condição Humana”. Na sexta-feira (06) à noite, no momento em que a questão o interpelou – “Já esperava por essa pergunta”, disse algo resignado ante a magnitude do desafio -, o caso fervia.
Com a inescapável ajuda de uma imprensa perversamente oportunista, cada vez mais ágil e eficiente quando se trata de explorar as emoções públicas extraindo o máximo de sensação de fatos onde estão presentes, principalmente, a violência, as bizarrias sexuais e os conflitos sócio-institucionais. Repare o leitor no aparecimento da hipótese de excomunhão também da garota. Com toda certeza, o arcebispo pernambucano não a mencionou espontaneamente, por sua livre iniciativa. É só reler o trecho aspado da sua fala lá atrás para concluir que foi provocado, estava respondendo a uma pergunta.
Ao perceberem o recorrente e previsível apego do arcebispo à expressão de um conservadorismo bisonho e até ridículo, os jornalistas concluíram que em dom José tinham um prato cheio. E haja a fazê-lo falar sobre presunções como a que especulou por que um padrasto que estupra a enteada desde os seis anos de idade também não fora excomungado. Distraidamente, ao se ater em comparar a gravidade dos pecados do aborto e do estupro, o religioso sequer cogitou noutra punição para o estuprador.
Diante o sucesso fácil da imagem de um religioso tacanho, presunçoso e estupidamente severo (capaz de punir médicos, mas não um estuprador), ninguém se lembrou de ressalvar que, a rigor, dom José estava só tentando defender a vida segundo a norma da sua fé. Difícil estimar os danos para a Igreja daí decorrentes.
A imprensa, no entanto, não inventa nem produz comportamentos - ela os reflete. Numa sociedade consumista ávida por emoções brutais, o compromisso da mídia não é mais com a verdade, mas com a audiência, com a demanda.
3 – FÉ E RAZÃO
Pois bem. Enquanto dom Moacir se preparava para atender à platéia que pedira sua manifestação, a CNBB e a representação do Vaticano no país, de uma forma bem mais diplomática e ponderada, já tinham vindo em socorro do atrapalhado dom José, mas principalmente não descuidando de recomendar uma punição para o estuprador e reiterando a posição da Igreja em defesa da vida.
A considerar, pois, na resposta de dom Moacir há, primeiro, a coragem e o sentido visceralmente cristão da humildade, ao reconhecer a dificuldade da questão e tentar entender sua complexidade buscando socorro na medicina. Depois a inequívoca reafirmação da sua fé, porquanto a crença em Deus pressupõe a admissão de um discernimento superior à inteligência humana.
Ora, se, para o crente, Deus, que é a inteligência superior, dotou o homem de raciocínio, não deverá ter sido para que ele permanecesse eternamente estacionário no tempo e no espaço em termos de pensamentos, opiniões e conhecimentos. Externar, pois, a capacidade de considerar as circunstancias num momento em que a excepcionalidade se impõe apenas reafirma, no crente, a convicção de que só uma inteligência superior poderia ter caprichado tanto na criação.
Por fim, a aguçada habilidade política. Num contexto em que se estava tentando estabelecer um diálogo entre a fé e a razão, nada mais jeitoso do que sugerir o quanto pode ser desastroso para ambos quando a religião quer ser ciência - e vice-versa. De tanto que andou dando com os burros n’água ao pretender explicar o cosmo, a religião bem que poderia se abster de se imiscuir nas complexidades do corpo anatômico – ou fazê-lo amparada no conhecimento secular.
Do mesmo modo, é uma tolice boçal imaginar que a ciência possa ser a rainha da cocada preta. A teoria de Darwin, por exemplo, ao contrário do que muitos imaginam, jamais chegou nem perto de desvendar o mistério da origem humana. Nesse sentido, continua sendo uma hipótese de trabalho que pode, quando muito, explicar como a vida evolui.