CINEMA: Folclore, Amazônia e orixás: quando as animações apostam na cultura nacional

Assim como o Dia do Saci foi ofuscado pelo Halloween, as animações sobre personagens e histórias brasileiras lutam por espaço em um mercado desproporcionalmente ocupado por produções norte-americanas

CINEMA:  Folclore, Amazônia e orixás: quando as animações apostam na cultura nacional

Foto: Divulgação

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Um grupo musical conhecido como Trio Halloween desembarca no Brasil com recepção digna de popstars. Mas o show tão aguardado pelos fãs é apenas um pretexto para seu verdadeiro objetivo: roubar um livro mágico que reúne todas as histórias do folclore brasileiro e, assim, ter o controle das lendas do país.

 

Essa é a sinopse de Além da lenda – o filme, longa-metragem animado que estreia nos cinemas em 4 de agosto. O comentário sobre o domínio da cultura estrangeira no Brasil enche a trama de metalinguagem: assim como o Dia do Saci foi ofuscado pelo Halloween, as animações sobre personagens e histórias brasileiras lutam por espaço em um mercado desproporcionalmente ocupado por produções norte-americanas.

 

Além da lenda faz parte de uma onda. Quem busca ver mais do que filmes da Disney deve ficar de olho em uma nova safra de animações dirigidas ou protagonizadas por mulheres que põem o foco na cultura nacional. Em março, o longa Tarsilinha, dirigido por Celia Catunda e Kiko Mistrorigo, levou às telas uma história inspirada na obra da artista Tarsila do Amaral (1886-1973) e permeada por personagens como Saci e Sapo Cururu.

 

Com direção de Alê Camargo e estreia prevista para 2023, Tainá e a flecha azul adaptará a série animada sobre a indiazinha que protagonizou três filmes de live-action lançados nos anos 2000. E Além da lenda, também um produto originalmente criado para a televisão, agora buscará conquistar o público de cinema com as aventuras de Curupira, Comadre Fulozinha e Negrinho do Pastoreio.

 

Sotaque local

 

Segundo a cineasta Marília Mafé, que dirigiu Além da lenda em parceria com Marcos França, a trama do Trio Halloween buscou refletir o desafio de fazer com que os brasileiros consumam sua própria cultura. “No caso do audiovisual, isso é gritante: não há filme nacional que vá conseguir bater de frente com um filme da Disney ou de super-herói. Com isso, vamos formando uma série de referências que não são da nossa vida e do nosso entorno”, afirmou a cineasta em entrevista a esta coluna. “Além da lenda defende que não é preciso negar o que vem de fora, mas dar espaço ao que é feito aqui, sem julgá-lo como inferior.”

 

De todos os 40 profissionais que trabalharam em Além da lenda, apenas um não era de Pernambuco, onde toda a produção foi realizada. A diretora conta que os atores se surpreenderam ao ser orientados a manter seus próprios sotaques na hora de dublar os personagens.

 

“Foi algo novo para eles, que estão acostumados a ter de neutralizar o sotaque pernambucano e levar para algo mais próximo [do sotaque] do Rio de Janeiro e de São Paulo, onde estão os centros de gravação de voz”, relembrou Marília. “Mas nós queríamos trabalhar com o nosso sotaque mesmo. Há muitas referências pernambucanas, formas de pensar e de falar que são pernambucanas e que tinham de aparecer na história.”

 

É provável que tais referências e as próprias lendas citadas no filme não sejam conhecidas por parte do público infantil, mais exposto às histórias do Homem-Aranha e da Mulher-Maravilha do que às do Saci e da Cuca. A falta de conhecimento prévio sobre as lendas brasileiras não é vista como problema pela diretora, que aponta as questões universais trabalhadas no roteiro. “Estamos falando sobre união, amizade, coragem, medo, o menino que está a fim da menina, sentimentos e conflitos humanos pelos quais todo mundo passa”, comentou. “Você conhece esses personagens como conhece qualquer outro personagem, e o primeiro contato com a história bem contada pode aproximar as crianças de coisas com as quais elas talvez não tenham tido contato ainda.”

 

Desafiando as estatísticas

 

No terreno do curta-metragem, um lançamento marcante dos últimos anos foi Òrun àiyé – a criação do mundo (2015), de Jamile Coelho e Cintia Maria. Inicialmente pensado como uma animação experimental e sem diálogos voltada para adultos, o filme em stop motion acabou englobando também o público infantil ao mostrar uma criança que ouve seu avô narrar a criação do mundo e dos seres humanos pelos orixás.

 

Mais de 45 profissionais trabalharam na produção, que foi feita na Bahia e levou 455 dias para ser completada, com exceção de bonecos confeccionados em São Paulo. Ao realizarem o curta, Jamile e Cintia foram contra uma série de estatísticas: afinal, se as mulheres já são minoria na direção de cinema, tal participação é ainda mais reduzida em se tratando de mulheres negras atuando na área de animação e contando histórias não apenas brasileiras, mas afro-brasileiras.

 

 

“Tínhamos a dimensão de que fazíamos parte de todos esses grupos, mas o desejo de fazer esse filme, que serve a uma causa muito maior, era tão grande que as dificuldades se apequenaram”, definiu Cintia. “Òrun nos fez acreditar no impossível: mostrou-nos que, por mais difícil que seja, nós, mulheres negras, nordestinas e suburbanas, também podemos trabalhar no audiovisual, fazer animação e ter sucesso contando histórias que fogem da linha eurocêntrica e hegemônica.”

 

Questão de público

 

As trajetórias de Além da lenda e Òrun àiyé sugerem que o público tem interesse por animações calcadas na cultura brasileira. Ambos os filmes foram adaptados para livros infantis, e Além da lenda também já rendeu podcast e vai ganhar uma versão em videogame. Por sua vez, Òrun àiyé rodou por dez países e foi o filme mais visto do ano passado na Itaú Cultural Play, plataforma de streaming do Itaú Cultural (IC). “As pessoas são curiosas e gostam de conhecer outras histórias, assim como gostam de se ver”, argumentou Jamile Coelho. “Percebo que o cinema nacional com identidade brasileira gera identificação no público nacional e curiosidade no público estrangeiro.”

 

Segundo a diretora, são muitos os relatos de pessoas impactadas pelo filme – das que passaram a ver o candomblé com outros olhos à espectadora que se interessou por fazer cinema, porque, “se mulheres pretas tinham conseguido, poderia acreditar nela também”. “Ter essa conexão com o público com um curta-metragem produzido por mulheres, no Nordeste e sem recursos para distribuição e comunicação é muito especial. Fizemos o filme sempre pensando na plateia, e acredito que as pessoas sentem isso.”

 

Chegar ao público não é fácil, já que a distribuição segue sendo um dos grandes gargalos da produção audiovisual do país. De acordo com a Agência Nacional do Cinema (Ancine), todos os 20 longas-metragens de maior bilheteria no Brasil em 2021 foram produzidos nos Estados Unidos – sendo seis deles animações. No entanto, se considerados apenas os 20 longas brasileiros de maior bilheteria, nenhuma animação entra no ranking.

 

Mudar esse cenário passa por políticas públicas que envolvam editais de fomento, projetos de formação de público e regulamentação de cotas de tela. O investimento estatal esteve por trás do boom vivido pelo setor antes do governo de Jair Bolsonaro, especialmente a aprovação da Lei no 12.485, conhecida como Lei da TV Paga, que em 2011 obrigou emissoras de televisão a cabo a exibir conteúdo nacional. Também foram fundamentais as políticas ligadas à ação afirmativa: Òrun àiyé, por exemplo, foi contemplado no edital Curta afirmativo: protagonismo da juventude negra na produção audiovisual, aberto a obras dirigidas ou produzidas por artistas negros com idade entre 18 e 29 anos.

 

“A grande maioria dos nossos trabalhos é fruto das políticas públicas implementadas através dos editais afirmativos”, afirmou Cintia Maria. “Num país onde negros são mais de 50% da população, deveriam ser comuns os filmes dirigidos e protagonizados por negros, com temática baseada em suas experiências e sem imagens e representações estereotipadas. No entanto, os dados mostram outra realidade e apenas reforçam o quanto o racismo segmenta e invisibiliza essa parte da população.”

 

Marília Mafé destacou que o fomento estatal existe em todo país que exporta cultura – não só os Estados Unidos, mas também o Japão, outra potência da animação, e a Coreia do Sul, que está em alta tanto no audiovisual quanto na música. Para ela, políticas públicas que fortaleçam a produção ainda tenderão a estimular a maior presença de elementos da cultura brasileira nas narrativas. “Quanto mais as pessoas produzem e mais o mercado amadurece, naturalmente paramos de ficar olhando tanto para as referências de fora e passamos a olhar para o nosso entorno”, opinou. “Começamos a ver como é a rua onde a gente mora, como são nossos pais e nossos irmãos, e vamos trazendo isso para os nossos desenhos e transformando essas pessoas nos nossos personagens.”

 

Autor: Itaú Cultural

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