ARTIGO: Escritora fala sobre o 'Desejo de ser e esforço para existir: o drama dos ianomâmi'

"Não é possível uma reconstrução do país sem que revisemos o que vimos, chamando de vida e de humanidade!

ARTIGO: Escritora fala sobre o 'Desejo de ser e esforço para existir: o drama dos ianomâmi'

Foto: Divulgação

Como a experiência cotidiana comprova, a guerra civil contra as formas de existência subalternizadas tornou-se cartão-postal de nosso tempo. O neofascismo dos últimos anos se encarregou de suprimir as formas de vida que não subscreveram a rubrica do branco macho- conservador-cristão-evangélico-heteronormativo-neoliberal.

 

O extrativismo predatório teve desbragada autorização (era preciso passar a boiada) com a institucionalidade que assaltou o poder de 2019-2022 e fez das reservas naturais, já sob altíssimo risco, uma fonte de exploração de um capitalismo sem peias, asfixiando práticas milenares dos povos indígenas e quilombolas. Mais do que isso, esse extrativismo predatório asfixiou grupos étnico-raciais, deixando-os sem possibilidade de garantir a própria sobrevivência. O colapso no território ianomâmi é o retrato mais cruel dessa guerra, que comprova o triunfo da barbárie.

 

Foram diversas as tentativas da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) de barrar, junto ao STF, a invasão das terras indígenas, com a reserva dos Ianomâmi no epicentro da denúncia por ser uma das mais afetadas pelo garimpo ilegal. Há quase um ano, a Apib comunicou o descumprimento da União das medidas ordenadas pelo colegiado do STF, para que fossem tomadas todas as iniciativas para proteção da vida, segurança e saúde dos Ianomâmis, bem como a contenção e o isolamento dos garimpeiros em Roraima.

 

Na ocasião, a Apib enumerou ao menos 12 ataques de invasores a comunidades ianomâmis, principalmente nas regiões dos rios Uraricoera, Mucajaí e Couto Magalhães, do Homoxi, de Xitei, do Parima e do Apiaú. A Apib alertou, ainda em maio de 2022, que o território ianomâmi vivia a mais grave crise humanitária desde sua homologação, em 1992. O relatório descrevia o esquema criminoso associando-o a uma rede tecida pelos fios podres do aliciamento, do assédio de menores, da violência e do abuso sexual contra mulheres e crianças, algumas embriagadas por bebidas alcoólicas e estupradas até a morte.

 

A cada episódio, a cada cena desse “acontecimento criminoso” que chega à praça de visibilidade pública neste início de 2023, somos provocados(as) a reposicionar palavras e conceitos validados pela comunidade planetária. Cada vez mais expressões como vida, civilização, humanidade, cidadania e direitos são submetidas a um processo de atualização de sentido, tendo em vista sua aplicabilidade no tecido social.

 


Não é possível uma reconstrução do país sem que revisemos o que vimos, chamando de vida e de humanidade. Não é possível uma reconstrução do país sem que as vozes dos povos originários participem das instâncias decisórias em prol de uma transformação profunda. São essas vozes que, aliás, vêm sinalizando para novos léxicos, novos conceitos, novos paradigmas, novo ethos.

 

De forma radical, a situação calamitosa dos Ianomâmi nos aponta que o que é necessário opor ao capitalismo predatório, ao lucro acima de tudo e aos planos de austeridade dos governos é uma outra ideia de vida que consista, por exemplo, em partilhar em vez de lucrar em escala exponencial, em conversar e denunciar em vez de calar, em lutar em vez de sofrer, em se aproximar em vez de manter distância. Isso traça, por um lado, um claro perfil daquilo pelo que e contra o que se luta e, por outro, abre a porta para a descoberta serena das mil outras formas de entendimento da “boa vida”, formas que, apesar de diferentes, não são inimigas, pelo menos não necessariamente (Comitê Invisível, 2016, p. 41).

 

Assim como os povos indígenas, as mulheres negras apresentaram outro conceito de vida e de desenvolvimento. Elas se contrapuseram ao neoliberalismo afastando-se de qualquer armadura dele decorrente. Historicamente, as mulheres negras e os povos indígenas vêm criticando essas normas, dando ênfase à necessidade de novos arranjos, exortando a sociedade brasileira para zerar o jogo, formulando novas propostas que concebem a vida e a humanidade como cifras indispensáveis para a recomposição de “um mundo que se despedaça”, evocando o escritor nigeriano Chinua Achebe.

 

A despeito de todas as investidas criminosas que deitam raízes em tempos distantes do nosso calendário, os Ianomâmi e todos os povos originários travam uma luta histórica que expressa o desejo de ser e esforço para existir, que expressa a possibilidade de enunciação e reafirmação de um pacto verdadeiramente civilizatório. Que possamos levantar nossas vozes e empreender ações que resgatem o sentido de palavras que foram esvaziadas pela brutalidade que se instalou em Roraima. Pela vida dos Ianomâmi, pela vida de todos nós! 

 

Quem é autora

 

Rosane Borges é  jornalista, doutora em ciências da comunicação, professora colaboradora do Colabor [Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP)] e professora convidada do Diversitas (USP). É articulista da revista Istoé e autora de diversos livros, entre eles Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro (2004), Mídia e racismo (2012), Esboços de um tempo presente (2016) e Fragmentos do tempo presente (2016).

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