HISTÓRIA: Personagem de romance é inspirado no capitão gay que governou Rondônia

Militar promoveu prisões políticas em 1964 e acabou assassinado

HISTÓRIA: Personagem de romance é inspirado no capitão gay que governou Rondônia

Foto: Divulgação

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O escritor e dramaturgo paulista [radicado em Curitiba] Edilson Pereira dos Santos acaba de lançar um romance baseado na história com h: ‘Mi Puerto Viejo querido’. Livro relata o que aconteceu em Porto Velho em 1964, quando do início do regime militar no país.

 

Na época, chegou a Porto Velho um carioca anteriormente designado para o 27º Batalhão de Caçadores de Manaus (AM), mas que acabou alocado para Rondônia: o capitão de engenharia Anachreonte Coury Gomes — que no romance de Edilson inspirou o personagem Policrates.

 

Na vida real, em 1964, o capitão era um moço de 29 anos, forte, branco, cabelos pretos, 1,73 metro, um tanto quieto e misterioso, graduado engenheiro militar na turma de 1959 da Escola Técnica do Exército, no Rio de Janeiro, então capital do Brasil.

 

O escritor Edilson Pereira, autor de ‘Mi Puerto Viejo querido’
 

Depois de formado, passou uma temporada no Nordeste, voltou ao Rio, de onde embarcou no dia 13 da março de 1964 para o Norte, a bordo do navio Princesa Leopoldina. Poucos dias depois, 1º de abril, era deposto o presidente João Goulart e os militares assumiram o controle da Nação.

 

De Manaus, o capitão seguiu para Porto Velho de avião. Indicado como interventor federal pelo presidente da República, general Castelo Branco, botou banca. O que ninguém sabia — ou fingia que não — era que Anachreonte Gomes havia sido enviado pelo Exército ao Norte do Brasil como forma de puni-lo [ou poupá-lo?] por conta de um escândalo iminente pelos casos de pederastia protagonizados por ele na Cidade Maravilhosa.

 

Chegando na Amazônia, o jovem oficial passou a ser assunto nos botecos da vida, com seu nome esquisito que ninguém sabia dizer direito circulando até nas bocarras de bêbados, naquele universo muito mais machista do que o de hoje.

 

Embora tivesse ficado pouco tempo em Rondônia — cerca de um mês — o militar impôs medo o suficiente. Interveio no governo territorial e na prefeitura, nomeou seu staff sem conhecer ninguém e deflagrou prisões políticas de estudantes, servidores públicos, jornalista, artistas, militantes de esquerda, notáveis, subversivos e oponentes ao novo regime.

 

Predominantemente, os presos tomavam parte do grupo ou eram associados  aos “Peles-curtas” — apelido dado aos liderados pelo deputado federal Renato Medeiros, do PSP, curiosamente, partido comandado nacionalmente por Ademar de Barros, que apoiava os militares.

 

Os “peles” se contrapunham aos “cutubas” dominados  pelo coronel Aluísio Ferreira, do PTB, curiosamente o partido do presidente deposto, João Goulart, mas que em Rondônia era o reduto das elites.  Os primeiros eram tratados como comunistas por seguirem o Goulart. Como se vê, desde aqueles tempos as siglas partidárias já não eram homogêneas no país.

 

O jornal ‘A Noite’, publicado no Rio de Janeiro, era dos mais importantes veículos de comunicação do país e cogitou que Rondônia estaria dominada por “comunistas”.  No dia 11 de maio, o interventor federal enviou um telegrama ao jornal, contestando a notícia e deixando claro que estava tudo sob controle no território. Assim Anachreonte redigiu o comunicado: “Respeito nota «Agitação Comunista» publicada edição deste jornal dia 20 de abril,  comunico dia 24 assumi Governo qualidade de interventor, reestruturando imediatamente todo gabinete administrativo territorial e municipal, tomando simultaneamente medidas observação todos os órgãos, administração federal, autarquias e sociedades de economia mista em todos os municípios, reina mais absoluta tranquilidade havendo encontrado receptividade população medidas moralizadoras imediatas tomadas pela interventoria. (A) Capitão Engenheiro Anachreonte Coury Gomes”.

 

O até então governador Abelardo de Alvarenga Mafra, tenente-coronel da Aeronáutica  e também ex-governador de Fernando de Noronha, entre 1955 e 58 [arquipélago já foi território federal com governadores nomeados entre 1942 e 1988, quando passou a ser distrito estadual de Pernambuco], era aliado de Renato Medeiros com suas ideias socialistas e fora nomeado pelo presidente Jango. Por seu pendor à esquerda, Mafra que tomou posse como governador de Rondônia — com honras e circunstâncias no Ministério da Justiça — havia apenas três meses, acabou preso durante uma viagem que fizera ao Rio de Janeiro, no início de abril de 1964, tão logo Goulart foi deposto. Os secretários de governo de Abelardo Mafra foram mantidos  os cargos até a chegada de Anachreonte Gomes a Porto Velho, que os colocou no xilindró.

 

As ações arbitrárias do interventor  foram ousadas, contudo, condiziam com  o Ato Institucional  número 1 (AI-1) assinado em 9 de abril pela Junta Governista formada por três militares [tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo, o general Artur da Costa e Silva e almirante Augusto Rademaker] responsáveis pela oficialização do Ato Institucional n°1. Logo adiante, veremos que o próprio interveniente de Rondônia seria atingido pelo temido Artigo Sétimo do AI-1, bem claro: “Ficam suspensas, por seis meses, as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade e estabilidade”.

 

Arrogante, sem experiência política fora da caserna e com a ficha suja no Exército — que não tolerava homossexuais na época — ele tentou se recompor; agia com veemência para agradar aos militares de alto coturno na expectativa de retornar ao Rio de Janeiro, sem máculas e com alguma credibilidade. Para ele, Rondônia era uma espécie de degredo para expurgar os pecados. Precisava limpar terreno e o próprio nome. Mas a libido parece ter falado mais alto do que a razão.

 

Despachava instalado no gabinete do governador, no Palácio Getúlio Vargas. É, até hoje, o mais jovem dentre todos os que ali entraram para tomar assento de chefe do Executivo local. No entanto, acabou sendo limado do posto pelo Exército porque correu o boato de que fora flagrado na alcova com um rapaz. Consta, aliás, que não teria sido um caso libidinoso isolado. Na manchete do jornal “O Combatente”, de princípios anarquistas, a afirmativa de que o interventor era “veado” levou o editor Inácio Mendes à prisão. Mais tarde, na década de 1970, Mendes foi visto como “herói da resistência” e acabou eleito vereador em Porto Velho, pelo MDB, partido de oposição aos militares que abarcava os comunistas cujas siglas — PCB e PCdoB —  tinham sido colocadas na clandestinidade.

 

A orientação sexual não entraria, hoje, em questão. Será? O fato é que o sujeito que comandava o território foi descrito pelo historiador Abnael Machado como uma “assombração”. O tipo que verte o medo. Burocrata insensível e sem escrúpulos que se via como paladino dos “bons costumes”, carola, dava aulas de moral e cívica para alunos da Escola Carmela Dutra. Ele não admitia a realização de bailes e brincadeiras dançantes na cidade, considerando as recreações, naquele momento, como “insubordinação”. Mas um soldado chamado Sebastião [segundo o historiador Francisco Matias] fazia serenatas exclusivas para o rapagão alojado no Palácio.

 

CAVALEIRO SOLITÁRIO

 

Depois do vendaval promovido pelo Anachreonte, autointitulado com a boca cheia de “agente da revolução de 64”, chegou em 24 de abril o novo governador, José Luís Manuel Lutz da Cunha Menezes, de 42 anos. Outra figura com hábitos incomuns, que preferia movimentar-se pela cidade a cavalo e segurando sempre um relho, algo bem pitoresco e alegórico que ficou marcado na memória de muita gente. Dom José Luís — como era também conhecido — ficou apenas onze meses no cargo de governador e voltou para o Rio de Janeiro, onde morreu em 2004,  40 anos depois de sua passagem por Rondônia. 

 

ELE TORNOU-SE INVISÍVEL

 

Uma curiosidade: a fotografia de Anachreonte Coury Gomes não consta da galeria dos ex-governantes de Rondônia; é como se ele não tivesse existido e nem governado, de fato e de direito, o Território Federal de Rondônia. Certo que ele foi interventor à custa de manobras. Mas foi. Porque o governador anteriormente nomeado por Jango, Abelardo Mafra, estava preso, enquanto que o  interino, Eudes Campomizzi [bacharel em direito que ocupava o posto de secretário geral no governo de Abelardo, o segundo na hierarquia porque na época não havia vice-governador nos territórios federais] estava afastado por força de um  atestado médico. Atribui-se ao capitão gay ter exercido pressão para que o interino se afastasse, forjando-lhe uma doença que não tinha, o que Eudes admitiu temendo também ser preso.

 

NO “LISTÃO” DO CASTELO BRANCO

 

Depois de sua passagem nebulosa por Porto Velho, o capitão retornou a Manaus, foi interventor por lá uns dias. Mas logo voltou ao Rio de Janeiro. Na capital carioca, em vez de estar creditado pelos serviços prestados ao regime militar, ele provou do próprio veneno enfrentando as rigorosas sanções que o mesmo dito-cujo defendia e bradava, começando pela moral e os bons costumes. Em 10 de outubro de 1964, ou seja, menos de cinco meses depois de fazer o que fez em Rondônia, Anachreonte Coury Gomes constava do “listão” de 755 nomes publicados na imprensa que caíram em desgraça por imperativo do AI-1; na relação baixada pelo presidente Castelo Branco naquele dia, com base em investigações sumárias e inquéritos policiais, foram atingidos servidores civis e militares, inclusive generais, que terminaram demitidos ou aposentados.

 

O ex-interventor foi punido, oficialmente, e colocado na reserva remunerada com patente de capitão, em plena juventude, aos 30 anos, sendo-lhe tolhida a carreira promissora. Certamente, o castigo  decorreu dos casos de pederastia, conduta hedionda aos olhos dos militares conservadores porque expunha e ridicularizada o Exército. Tempos sombrios e hipócritas na sociedade em geral que condenava ao cancelamento os “diferentes”.

 

As supostas relações homoafetivas do militar poderiam ser irrelevantes e apequenadas perto das barbaridades descabidas que ele impôs, com ferocidade, pontuadas pelas  humilhações dos  cárceres. O capitão foi usado pelo sistema, fez o serviço que lhe foi delegado e acabou preterido pela própria organização da qual fazia parte.

 

MEU NOME É ENÉAS

 

Depois que foi obrigado a deixar o Exército, Anachreonte envolveu-se em outras confusões. No Rio, instalou um cursinho pré-vestibular, passou a dar aulas  e teria se apropriado dos originais de um livro intitulado “Mecânica - Introdução e a Dinâmica” do professor Enéas Ferreira Carneiro. Sim, ele! O famoso médico e educador acreano que tornar-se-ia conhecido nacionalmente décadas depois como o político autor do célebre jargão “Meu nome é Enéas”, deputado federal pelo Rio e três vezes candidato a presidente da República.

 

Em 1967, Enéas foi à justiça dizendo que o militar da reserva teria publicado seu livro sem citá-lo como o autor verdadeiro. Ou seja, Enéas alegou ter sido vítima de furto. A 21ª Vara Cível do RJ determinou uma busca e apreensão dos livros impressos e distribuídos indevidamente por Anachreonte.

 

Inteligente ele era. Na mesma época do embate judicial com Enéas, o controvertido ex-militar passou  em oitavo lugar entre 747 aprovados como professor de matemática no extinto Estado da  Guanabara, e foi lecionar. Diziam que ele ficou cada dia mais contrito e silencioso, um tanto adepto do niilismo.

 

FEZ JANTAR PARA O SEU ASSASSINO

 

Descrito pela vizinhança como calado, morava sozinho em um apartamento no condomínio construído pelo Clube Militar à Rua Lauro Müller, 96, bairro do Botafogo (zona sul do Rio de Janeiro). O ex-interventor de Rondônia tinha 42 anos em 1976.

 

Naquele 11 de setembro, um sábado, ele chegou em casa à uma da manhã, segundo o porteiro. Carregava uma sacola de compras do supermercado. Estava sozinho quando foi visto entrando pela última vez.

 

No apartamento confortável de 80 metros quadrados de três quartos, no segundo andar, Anachreonte preparou um jantar regado a bom vinho. Ao final da degustação, foi assassinado pelo acompanhante que usou o gargalo da própria garrafa do vinho para perfurar o pescoço do anfitrião. No momento em que morreu no quarto de empregada, ele estava em decúbito dorsal e usava apenas cueca vermelha, conforme o registro feito pela polícia.

 

Dois dias sem dar notícias. Razão da preocupação de Dona Júlia, mãe do ex-militar, que foi ao apartamento dele e o encontrou morto. Era uma noite de segunda-feira. Dona Júlia saiu à janela gritando “mataram meu filho, mataram meu filho”. Por volta das 19h os moradores viam a novela “Estúpido Cupido”, da TV Globo, e acorreram àquela senhora diante do cadáver. O síndico, coronel Pedro Paulo do Vale, acionou os policiais.

 

Aos investigadores, a mãe da vítima fez questão de mencionar:  “Anachreonte foi interventor em Rondônia”. O que dona Júlia não disse foi que ele fora praticamente expulso do Exército. O dublê de ditador teve um fim bem à lá Pedro Almodóvar [cineasta espanhol].

 

O caso foi registrado como latrocínio — o assassino levou um gravador e um relógio digital. Mas o delegado deixou claro: a vítima conhecia bem o algoz, cozinhou para ele e tomaram juntos o vinho comprado no Disco Supermercado. Quando  o capitão chegou sozinho ao AP, o seu assassino já estava lá dentro, à espera do “amigo”, pois depois daquela hora, em que a vítima chegou da rua, ninguém mais entrou no condomínio, conforme sublinhou o porteiro. Tudo dava a entender para a polícia que se tratasse de um garoto de programa ou algo assim.

 

UM POEMA DE ANACREONTE

 

O nome pouco comum do capitão originou-se do do poeta lírico grego Anacreonte, que viveu entre 570 e 485 a.C. Por ironia, sua poesia muito cultuada na Antiguidade centra-se nos prazeres do amor e do vinho.

 

O LIVRO

 

Como está claro, o livro ‘Mi Puerto Viejo querido’ é um romance e não traz detalhes da biografia de Anachreonte que, aliás, não é sequer citado com este nome. Ainda assim, a notícia sobre a obra foi o estopim que despertou em mim o interesse em buscar mais informações sobre o bizarro e meteórico personagem que a História de Rondônia tentou apagar.

 

Sobre o livro de Edilson Pereira: são 221 páginas, publicado pela Editora Baskerville, degustado e elogiado por críticos criteriosos, a exemplo do jornalista Montezuma Cruz, um dos maiores intelectuais de Rondônia. Edilson faz questão de frisar que o trabalho é de ficção. Mas, é certo que “a arte imita a vida” [Aristoteles] . E o inverso acontece, como dizia o escritor [e provocador] Oscar Wilde.

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