ÓRFÃOS DA INTOLERÂNCIA: Atendimento psicológico é usado para superar a saudade

Além da perda, famílias ficam com dificuldades emocionais e financeiras

ÓRFÃOS DA INTOLERÂNCIA: Atendimento psicológico é usado para superar a saudade

Foto: Cícero Moura

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**Os nomes de algumas pessoas nessa reportagem são fictícios para preservar a identidade das famílias que tiveram mulheres vítimas de feminicídio. 
 
MEDO
 
Porque a mamãe está demorando pra voltar? A pergunta é feita quase todos os dias por um dos filhos de Marilene (nome fictício ) uma vítima da violência doméstica. A criança de 07 anos - tem ainda outros dois irmãos de 3 e 11 anos -, vive o drama da perda da mãe, que foi covardemente assassinada pelo pai das crianças.
 
Ao chegar para produzir a reportagem, a primeira coisa que chamou atenção foi o olhar de desconfiança do pequeno Lucas, 03 anos. Escondendo o rosto nos braços da tia, ele parecia se mostrar assustado com a presença de um "estranho" na pequena casa de dois cômodos, na zona Leste de Porto Velho. 
 
FOTO: Cícero Moura - Rondoniaovivo
 
"Não se incomode, ele é assim mesmo. Quando Luciana era viva, ele já demonstrava medo quando o pai chegava perto", explica uma tia que pediu para não ser identificada. Ela conta que as crianças se criaram vendo o pai chegar em casa embrigado, discutir com a mãe e agredi-la. 
 
VIOLÊNCIA
 
A tia explica que "todo mundo" sabia das agressões, mas por conta dos filhos a mãe dizia que suportava a situação. O primeiro registro oficial da violência contra Luciana só aconteceu graças a um vizinho que chamou a polícia durante um dos atos de monstruosidade do marido.
 
Ele teria chegado da rua embriagado, destruído vários objetos dentro de casa e agredido a mulher após ela se recusar a preparar comida. Como em outras situações, o filho mais velho também teria sido surrado ao defender a mãe, os vizinhos acharam por bem acionar a PM.
 
Foi a primeira de cinco ocorrências policiais registradas contra o marido. Menos de um mês após pedir a separação, Luciana foi morta pelo então ex-companheiro. O homem chegou a ser preso, mas conseguiu decisão judicial para responder em liberdade.
 
FOTO: Cícero Moura - Rondoniaovivo
 
Os pais de Luciana não moram em Porto Velho e as crianças estão com a tia, que afirma criá-los com bastante dificuldade. "Eles nunca conviveram com os avós, era eu que sempre estava ao lado desde quando a mãe deles precisava trabalhar. Mesmo com todas as limitações eu não tenho como deixá-los sem ajuda. Ainda bem que alguns vizinhos sempre doam alguma coisinha, senão era bem difícil mesmo", explica a mulher.   
 
LIMITAÇÕES
 
É um ritual diário. Sair de casa logo cedo, caminhar quase 02 quilômetros para deixar três netos - 05,07,10 anos - na escola. Não é uma longa distância e não seria nenhum absurdo essa rotina, feita por milhares de pessoas diariamente Brasil afora, se não fosse por um detalhe.
 
A responsável pela obrigação é dona Rosalina, viúva, mãe de 06 filhos e avó de outros seis netos. Três deles estão sob sua guarda desde que a filha Simone foi assassinada pelo ex-marido. 
 
Há dez anos a idosa descobriu uma Artrose que não lhe permite andar com tranquilidade. Usa uma bengala para se locomover e demora quase três vezes mais que o normal para se deslocar quando precisa. 
 
“As crianças precisam estudar, não tenho ninguém que faça isso, meus outros filhos trabalham e tem suas coisas pra cuidar. Mas tá bom, demora um pouco, mas eles chegam na escola”, diz ela com olhar cansado. 
 
FOTO: Cícero Moura - Rondoniaovivo
 
CRUELDADE
 
Sobre o que aconteceu com a filha, Rosalina espera justiça. “Era uma menina muito doce, querida por todos, estava sendo mal tratada pelo marido, não queria mais ele, queria vir morar comigo, mas ele não aceitava. Fazia ameaças todo dia e não deixava nem ela trabalhar direito. Teve um dia que a coitadinha chegou aqui com o olho roxo, quase fechado, após ser agredida com maldade. Insisti várias vezes pra ela largar ele, denunciar na polícia, pedir proteção.
 
FOTO ILUSTRATIVA
 
Ela tinha muito medo do que podia acontecer. Quando resolveu separar e denunciar a violência achou que havia tirado um peso das costas. Dois meses depois minha filha foi enterrada. Uma inocente que me ajudava em tudo foi morta sem dó por um covarde, que nem nos filhos pensou”, desabafa com os olhos marejados. Dona Rosalina diz que logo depois do crime, o assassino da filha fugiu. Acabou sendo preso por acaso em uma abordagem policial. Tinha um mandado de prisão em aberto pelo assassinato de Simone.
 
“Enquanto eu puder vou atender às crianças, mas terá uma hora que eles vão ter que se virar. Não sei como vai "se” isso, eles não querem saber do pai e meus filhos tem suas “coisa” e não tem condições de ajudar a criar”, lamenta desolada.
 
BANALIDADE
 
Os casos de violência contra a mulher nos últimos anos em Rondônia viraram uma banalidade. Tirar a vida de ex-esposas ou ex-companheiras parece ser um ato normal de penalidade por, na maioria dos casos, a mulher querer terminar uma relação.
 
São vários os exemplos de violência que remetem sempre à questão sentimental. Também existem casos envolvendo questões financeiras, desemprego e uso de drogas, mas em número pequeno.  
 
 
 
No bairro Aponiã, um homem matou a mulher estrangulada na cama. Chamou a polícia no dia seguinte. A motivação do crime seria um pedido para separar, terminar o relacionamento.
 
Na Estrada da Areia Branca, zona rural de Porto Velho, um homem de 45 anos matou a companheira a golpes de faca após uma bebedeira em um bar. Teria havido uma discussão e em seguida o assassino esfaqueou a companheira. Logo após fugiu em uma camionete. A mulher tinha quatro filhos de outra relação e morava há mais de 03 anos com o homem que lhe assassinou.
 
Em outra situação, o ex-marido foi até a casa da ex-mulher, uma moça de 30 anos, arrombou a porta do apartamento e tentou matar o atual companheiro dela. O homem conseguiu fugir e o acusado então esfaqueou sua ex-companheira que morreu na hora. Ele fugiu após o crime.
 
Em outro caso, uma mulher de 62 anos que estava com medida protetiva, também foi morta a facadas na cidade de Colorado do Oeste, no Cone Sul do Estado. O homem não se incormava com a separação e mesmo com a restrição imposta pela Justiça, foi até a casa da vítima e lhe assassinou.
 
AÇÃO
 
A Polícia Civil afirma que tem agido com rigor no combate a violência doméstica. Este ano, a Delegacia Especializada de Auxílio a Mulher (DEAM) já executou 06 Operações onde teriam sido apreendidas 15 armas de fogo e mais de 350 munições.
 
Também teriam sido feitas quase 100 medidas cautelares – proteção ou defesa de direitos ameaçados - até o mês de junho.Trinta agressores foram presos pela prática de violência doméstica. 
 
Segundo a Delegada Titular da DEAM, Amanda Ferreira levy, nos últimos quatro meses aconteceram 5 mutirões destinados a ampliar o atendimento, de forma extraordinária,  do número de vítimas que realizaram registros de ocorrência no ano de 2022.
 
A delegada enfatiza que foram instaurados Inquéritos Policiais cujo índice de conclusão atual, realizado com o emprego da Ação Sincronia, chega a 2/3 dos processos instaurados neste ano, viabilizando a celeridade e contemporaneidade de envio dos procedimentos ao Ministério Público Estadual.
 
PROTEÇÃO
 
Amanda Levy argumenta que a Polícia Civil oportuniza às vítimas de violência doméstica o registro de ocorrência e o Requerimento de Medida Protetiva, previsto na Lei 11.340/2006 (Maria da Penha), por meio do qual a vítima pode requerer ao Juizado de Violência Doméstica a aplicação de diversas medidas restritivas aos agressores.
 
Entre elas estão o afastamento do lar e a proibição de aproximação e ou contato por qualquer meio com a vítima e familiares, sendo também oportunizada às pessoas ameaçadas o encaminhamento à Casa Abrigo, local seguro e sigiloso onde é possível aguardar o deferimento da medida solicitada, inclusive acompanhadas de seus filhos. 
 
Todos os Inquéritos que tratam de violência doméstica, inclusive os que apuram os delitos de feminicídio na forma tentada e consumada passam pela análise do Ministério Público, que é o fiscal da lei, sendo a Delegacia Especializada em Apuração de Crimes contra a Vida a responsável pela apuração dos delitos.
 
Importante destacar que a delegacia especializada de Porto Velho foi classificada pelos órgãos de segurança como a 4º Delegacia do Brasil com maior índice de resolução de crimes. Qualquer mulher que se encontre em situação de violência doméstica pode procurar ajuda em qualquer unidade de Polícia, DEFLAG, UNISPs, delegaciavirtual e 197 (que funcionam 24 horas) e também a DEAM, localizada na Avenida Amazonas, 8145, bairro Escola de Polícia – Telefone 98479-8760. No horário entre 8h e 18h também está disponível o atendimento psicológico. 
 
 
 
PROMOTORIA
 
O Ministério Público de Rondônia realiza um trabalho amplo sobre o assunto  através da  Promotoria de Proteção à Criança e ao Adolescente. O titular do órgão, promotor Marcos Tessila, explica que existem várias medidas de proteção que são aplicadas conforme a situação em que as famílias ou crianças se encontram.
 
 
 
Tessila enfatiza que nas questões de vulnerabilidade são adotadas medidas  de proteção que podem  ser de estudo social do casal; atendimento psicológico; acolhimento da criança (em último caso); acompanhamento da situação e outras ações aplicadas de acordo com a necessidade.
 
“É feito um levantamento sobre o grau de vulnerabilidade, sendo que o resultado é que vai definir o mecanismo de ação e a intensidade do trabalho a ser realizado”, explica Tessila.
 
O promotor também destaca parceria com a prefeitura de Porto Velho que atua em situações pontuais ocasionadas pela violência. "Não há um perfil único de vítima", destaca Tessila. As vítimas tanto podem ser crianças de colo como adolescentes com idade média de 14,15 anos, podendo chegar até os 18 anos.
 
AÇÃO SOCIAL
 
A Diretora do Departamento de Proteção Social Especial, Sefra  Maria Barros Silva, vinculada a Secretaria Municipal de Assistência  à Família (SEMASF), diz que existem quatro unidades municipais que atendem 24 horas por dia e todos os dias, crianças e adolescentes com direitos violados. Além do vínculo com o Ministério Público, também existe parceria com o Conselho Tutelar, que normalmente é quem encaminha às vítimas da violência.
 
FOTO: Cícero Moura - Rondoniaovivo
 
Existem procedimentos distintos para atender uma demanda grande de pessoas que precisam de proteção. Sefra aponta que, infelizmente, o número de vítimas é maior do que se conhece, já que muita coisa não chega ao setor social  público. "Muitas famílias não sabem que a Prefeitura, o Ministério Público ou Conselho Tutelar podem ajudar", afirma Sefra.  
 
Hoje a maioria dos atendimentos são de pessoas que buscam ajuda. No caso das crianças órfãos, vítimas de violência familiar, existe um trabalho bastante complexo para definir o tipo de ação que será realizada.
 
FOTO: Cícero Moura - Rondoniaovivo
 
O serviço começa com uma visita familiar onde são avaliadas as condições em que se encontram as crianças. Quando a mãe é assassinada pelo ex-marido ou ex-companheiro, por exemplo, o primeiro passo é saber quem abrigou os filhos. Existe uma ordem lógica chamada de núcleo extenso.
 
FOTO: Cícero Moura - Rondoniaovivo
 
Primeiro são procurados os avós, depois tios, primos e assim por diante. Os abrigos só ficam responsáveis pelas crianças ou adolescentes quando são esgotadas todas as possibilidades. Importante destacar que mesmo nos casos onde o autor de um assassinato contra a ex-mulher se encontra preso, isso não impede o vínculo com os filhos.
 
Parece meio contraditório, mas é o que determina a Lei. Também vale dizer que não há registro oficial de pai que tenha assumido tutela dos filhos diante de crime de feminicídio. "Normalmente as crianças tem medo e evitam qualquer aproximação do pai", argumenta Sefra Silva. 
 
FOTO: Cícero Moura - Rondoniaovivo
 
Nos casos onde as crianças já estão em abrigos, também vale dizer que as medidas protetivas são provisórias, breves e excepcionais. Não tem como o serviço público ficar responsável definitivamente ou até a maioridade.
 
FOTO: Cícero Moura - Rondoniaovivo
 
Após esgotadas todas as possibilidades de se encaminhar às vítimas para retorno aos familiares, a Vara da Infância destitui o poder familiar e cadastra as crianças no Sistema Nacional de Adoção. Antes disso, é priorizado um acolhimento familiar onde os menores somente são cuidados. Na sequência é que acontece o processo de adoção. 
 
Durante a produção dessa reportagem, 20 crianças se encontravam em acolhimento institucional - proteçao da Justiça e seus respectivos órgãos de apoio -, duas em acolhimento familiar e outras três em processo de análise judicial, que pode virar uma adoção.
 
FOTO: Cícero Moura - Rondoniaovivo
 
COMPORTAMENTO
 
A psicóloga Viviane Cecanho explica que falar de um contexto amplo como o da violência intrafamiliar é uma experiência que costuma ter uma série de repercussões, pois nessas situações, não é apenas a pessoa agredida que sofre, mas todos os membros da família que convivem direta ou indiretamente com a violência. 
 
Ela destaca que diariamente crianças e adolescentes vêm sendo submetidos a condições adversas em seus próprios lares, o que refletirá em prejuízos no seu desenvolvimento. Viviane aponta como fatores de risco ao desenvolvimento infantil todas as modalidades de violência doméstica, desde violência física, negligência e a violência psicológica, sendo que esta última inclui a exposição à violência conjugal e não raramente à violência sexual. 
 
FOTO: Arquivo Pessoal
 
No caso da violência psicológica, os prejuízos afetam as áreas dos pensamentos intrapessoais (medo, baixa-estima, sintomas de ansiedade, depressão, pensamentos suicidas), saúde emocional (instabilidade emocional, problemas em controlar impulsos e raiva, transtorno alimentar e abuso de substâncias), habilidades sociais (comportamento antissocial, problemas de apego, baixa competência social, baixa simpatia e empatia pelos outros e criminalidade), aprendizado (baixa realização acadêmica, prejuízo moral) e saúde física (queixa psicossomática, falha no desenvolvimento, alta mortalidade) e naturalização da violência, ou seja, transgeracionalidade da violência. 
 
Diante desse contexto o suporte de seu ciclo social, amigos e familiares restantes,  tem uma especial importância na compreensão de seu funcionamento psicológico e também a orientação para busca de intervenções profissional. Viviane enfatiza que o acompanhamento de um psicólogo é de relevância devido o grande impacto emocional sofrido, principalmente, pelas crianças.
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