Um conto junino - por Délcio Pereira

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O jornal da cidade anunciou que do sul vinha um vento frio. Comprou um casaco quente. Veio, sim, mas só durou metade de um dia. Deu o casaco ao guarda-roupa. Fazia  nada há três anos, então resolveu estender férias. Tomou de volta o casaco e deu-o, dobradinho, a uma mala. Nova! Viajou para lá, onde junho faz frio.

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Tinha festa de São João no fim da rua. A casinha que o hospedava pertencera aos seus avós e fica longe do fim da rua. Era noite do dia 23 de junho. Seria redundância falar do dia da festa, não fosse São João, no seu norte, festejado no Arraial Flor do Maracujá em um dia de junho ou de julho, quando quadrilhas brincam, Bois Bumbás disputam e flores de maracujá azulam a noite. Maracujazeiro no norte floresce bonito em julho.

 

Dispensou o banco de couro do carro do parente. Queria caminhar sob uma noite diferente e sobre qualquer rua, desde que não esquinasse com a dele. Aquela rua tinha, sim,  outras casas e outros ventos. Passava muita gente, toda, porém, usava roupa de frio. Inclusive ele. Principalmente.

 

Uma mocinha apertava um rapazinho e sussurrava aos ouvidos dele que era por causa do frio. Pensava a menina que se escondesse aquela paixão, estaria inventando o seu primeiro segredo. 

 

Pairava sobre a rua uma cerração, chuvinha saída das minas das nuvens. Ela diminuía as luzes dos postes, embaçava lentes de óculos e esfriava pontas de narizes, mas não molhava nem dava tosse ou espirradeira.

 

Não se via mariposas a voar em volta das lâmpadas acesas nem cachorros a molhar os pés dos postes.

 

Enfiou as mãos nos bolsos. Contraídas e frias, elas seguravam o frio. Com os cotovelos colados às costelas, lembrou-se dos pulinhos que espantam frio. Não pulou, mas andou rapidinho. Imagina-o comprimido e assim a caminhar! Imagina o que aconteceu na madrugada do dia 24!  

 

Mais para frente deu-se com um cachorro deitado no pelego, encolhido e manso, à frente da porta de uma casa e ao lado de um carro. O pardinho do pelego latisse como latiria o cãozinho nortista para quem lhe olhasse de través, ah! Ele correria. Só o olhou, não latiu. Estava o carro com os vidros opacos e o teto fosco, cores do sereno. Com a unha molequinha de um dedo, dava para escrever neles, tinha, porém, uma placa pregada no pé de pequi, que cobria o carro, e ela alertavam: “não me risca; sou amigo do cão que cochila no pelego.” Não escreveu nem ficou lá, mas falou ao sereno frio: como será a madrugada do dia 24?

 

A porta de uma casa de esquina se abriu para dar passagem a um casal. A mulher chaveou a porta e ajeitou o cabelo; o homem olhou torto para o chão, agachou-se, catou dele duas latinhas de cerveja amassadas e as jogou por cima do muro. Voltou para perto da mulher e deu-lhe o ombro para que se escorasse e afivelasse as sandálias.

 

─ Boa noite!

 

─ Boa noite! ─ confirmou o homem das latinhas.

 

─ Indo aonde?

 

─ Festa de São João ─ disse a mulher das sandálias.

 

─ No fim da rua?

 

Destinados a um só lugar, agora, três caminhavam.

 

Respiraram o mesmo sereno, mas somente ele pensou assim: ─ No meu norte, ano inteiro,  noite, o cachorrinho fica esparramado sobre a rua. Dia, arqueja debaixo de qualquer coisa que lhe forneça sombra. E seu Raí (Raimundo Piauí), dia ou noite, tanto faz,  caminha pela rua que muito gosta com a camisa desabotoada, calção folgado e havaianas. Reclama da mornidão do clima, mas gosta dele. Reclama porque reclamar e criticar dão mais votos que louvar. Tem, porém,  um dia em que fica feliz e até canta toadas.  Ele ama uma disputa entre Amos de Bois Bumbás na madrugada do dia 24.

 

A mulher andava devagarinho! Chegaram tarde à casa dos parentes festeiros. O homem não olhou torto para as latinhas inteiras e cheias nem para os copinhos de vidro e litros de água branquinha. Água que veio de um alambique de roça. De uma roça de Taiobeiras. Havia salgados, doces de tudo que é gostoso e pessoas com sede.

 

Bebeu porque também sentiu sede. Ao voltar da festa, viu muita gente a dançar nas ruas e a colher grãos, raízes, frutas e folhas nas calçadas das casas. Descobriu que a chuvinha das minas das nuvens era, na verdade, a fumacinha que levantava de uma fogueira feita por Isabel, no meio da rua e em plena madrugada do dia 24.

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