Indígenas e suas comunidades terão acesso à Justiça, desde que reconhecidas as formas próprias de cada povo para a resolução de conflitos. Também terão a garantia de intervenção nos processos que afetem seus direitos, bens ou interesses, respeitando-se desta maneira a autonomia e a organização social das comunidades.
São os fundamentos do Projeto de Lei nº 1977/2022, de autoria do senador Confúcio Moura (MDB-RO), dispondo sobre o Estatuto do Índio, para instituir princípios gerais do acesso das comunidades à justiça.
“Queremos aprimorar os modos de acesso das pessoas e dos povos indígenas à justiça, reconhecendo suas peculiaridades culturais e reconhecendo também a nossa ignorância sobre os critérios de justiça daqueles povos e pessoas”, diz o senador em sua justificativa.
Se o projeto for aprovado, comarcas com significativa presença indígena deverão preencher vagas de magistrados treinados e capacitados para dirimir seus litígios e ouvir suas reivindicações dentro da Lei.
O parágrafo 1º do Capítulo II estabelece que os índios e as comunidades indígenas possuem autonomia para constituir advogado ou assumir a condição de assistido da Defensoria Pública nos processos de seu interesse, conforme sua cultura e organização social.
Para o senador Confúcio Moura, embora seja objeto de ataques constantes, a Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Índio) traz, em seu espírito, a ideia da integração dos povos e das pessoas indígenas à “comunhão nacional”.
No entanto, conforme ele observa, “tal Lei tem sido bastante criticada, supostamente, por não conceber a possibilidade de que os povos e as pessoas indígenas permaneçam distantes da sociedade brasileira abrangente.”
REALISTA E HUMANA
“Não a vemos desta forma. O Estatuto do Índio é legislação realista e humana, ao mesmo tempo. Ao afirmar a ‘integração’ dos indígenas à ‘comunhão nacional’, não faz senão regular, acrescentando as ideias de ‘progressiva’ e de ‘harmônica’, processo histórico inevitável e que forneceu um dos pilares da sociedade brasileira”, ele assinala.
O senador de Rondônia adverte: “O Estatuto procura ‘civilizar’ ímpetos históricos fortíssimos e constitutivos, que não cessam de existir pelo simples fato de lhes sobrevir crítica cultural. Mas tais ímpetos, se reagem imediatamente quando se lhes procura negar completamente, aceitam, todavia, modulações e condições. É nesse sentido que vemos o Estatuto do Índio, e é por isso que resolvemos alojar nele algumas ideias normativas ligadas ao acesso à justiça.”
O QUE PROPÕE
Na íntegra, estas são as emendas constantes no Projeto de Lei nº 1977:
Art. 2º O Capítulo II do Título II da Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, passa a vigorar com a seguinte redação:
CAPÍTULO II – Do acesso à Justiça por índios e comunidades indígenas
Art. 7º O acesso à justiça por índios e comunidades indígenas aplicará os seguintes princípios:
I – reconhecimento da organização social e das formas próprias de cada comunidade indígena para resolução de conflitos;
II – igualdade e diferença entre todos os brasileiros como ideias balizadoras do diálogo interétnico e intercultural estabelecido entre a sociedade brasileira e os índios e as comunidades indígenas;
III – autoidentificação do índio ou da comunidade indígena;
IV – a participação de índios e de comunidades indígenas nos processos decisórios destinados a estabelecer padrões para seu acesso ao poder Judiciário;
V – atenção especial do juiz para a aplicação, em suas decisões, do inciso II do caput deste artigo, de modo a conciliar as exigências dos arts. 5º, 231 e 232 da Constituição;
VI – garantia da intervenção indígena nos processos que afetem seus direitos, bens ou interesses, em respeito à autonomia e à organização social da respectiva comunidade, promovendo a intimação da comunidade afetada para que manifeste eventual interesse de intervir na causa.
Art. 8º O poder Judiciário nomeará, para as comarcas com significativa população indígena, magistrados treinados e capacitados para proferir decisões conformes aos princípios enunciados no art. 7º desta Lei, e cuja capacitação incluirá:
I – período de coabitação do magistrado com as comunidades indígenas sobre as quais exercerá competência, de modo a conhecer seus costumes e sua cultura;
II – conhecimento da língua, ou das línguas, faladas pelas comunidades sobre as quais exercerá competência.
Parágrafo único. Antropólogos ou outros cientistas sociais poderão auxiliar o juiz, com pareceres técnicos, a decidir com base no inciso V do art. 7º desta Lei.
Art. 9º O ingresso em juízo de comunidades indígenas
independe de sua prévia constituição formal como pessoa jurídica.
§ 1º Os índios e as comunidades indígenas possuem autonomia para constituir advogado ou assumir a condição de assistido da
Defensoria Pública nos processos de seu interesse, conforme sua
cultura e organização social.
§ 2º A atuação do Ministério Público e da Defensoria Pública nos processos que envolvam interesses de índios e de comunidades indígenas não retira a necessidade de intimação da comunidade interessada para viabilizar sua direta participação, ressalvados as comunidades isoladas e de recente contato.
§ 3º Será possível o ingresso, a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, de índios e de suas comunidades em processos em que estejam presentes seus interesses.
Art. 10. Em todos os atos processuais haverá uso de padrões de comunicação que assegurem a compreensão, pelo índio ou pela comunidade indígena, do significado pleno daqueles atos, bem como das consequências de suas decisões.
Art. 11. Em assuntos relativos ao acolhimento familiar ou institucional, à adoção, à tutela ou à guarda, o juiz considerará os costumes, a organização social, as línguas, as crenças, as tradições e as instituições das comunidades indígenas.
§ 1º A colocação familiar deve ocorrer prioritariamente no seio de sua comunidade ou junto a membros do mesmo povo indígena, ainda que em outras comunidades.
§ 2º O acolhimento institucional ou em família não indígena deverá ser medida excepcional a ser adotada na impossibilidade, devidamente fundamentada, de acolhimento nos termos do parágrafo § 1º deste artigo. (NR).
“DIFERENÇA NÃO É INCAPACIDADE”
“Sabemos, hoje, o quão pouco sabemos dos povos e pessoas indígenas. O pouco que conseguimos aprender aponta para a necessidade de considerá-los como sujeitos plenos de direitos e não como incapazes e como gente que precisa de tutela. Ou seja: sabemos hoje que diferença não é incapacidade”, justifica o senador em seu projeto.
“Essa proposição vem da ideia de inscrevermos, na Lei, essas sabedorias de que viemos falando até aqui. E isso toma a forma, neste projeto, de aprimorarmos os modos de acesso das pessoas e dos povos indígenas à justiça, reconhecendo suas peculiaridades culturais e reconhecendo também a nossa ignorância sobre os critérios de justiça daqueles povos e pessoas. A proposição apoia-se na possibilidade de haver diálogo entre culturas sem que isso signifique, contudo, a descaracterização de cada uma delas”, ele acrescenta.