Brasil festeja 60 anos da Declaração dos Direitos Humanos como se fosse uma Suécia
1 – DIREITOS HUMANOS
O mundo celebra nesta quarta-feira (10) o 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não se tome por espírito de porco, porém, quem achar que tanto riso é sinal de pouco siso. De fato, não há muito que comemorar. O que, absolutamente, está longe de significar que não se tenha absolutamente nada para, senão festejar com foguetório e tudo a que uma festa tem direito, ao menos solenizar.
Festa mesmo ter-se-á no dia em que, no lugar de mundo (uns tantos do mundo todo), seja possível dizer que todos os homens do mundo podem celebrar a Carta que a eles confere e garante tais direitos. Mas é bilionário ainda o número dos que nem sequer sabem dessa bandeira que se pretende de todos os humanos. O que, por si só, vale como medida de quão distantes estão estes bilhões de humanos dos direitos que nela lhes são reconhecidos.
O reconhecimento efetivo, prático, dos direitos definidos na Declaração é, ainda, uma construção incompleta mesmo na maioria dos países tidos e havidos como civilizados. Nos que se caracterizam pela presença de miséria, pela concentração da renda, distribuição precária da Justiça, insegurança urbana, violência e corrupção das polícias, parlamentos indiferentes à sociedade e métodos pouco democráticos de governo, nesses países a prática da Declaração nem incompleta é - mal começou, no pouco que começou.
A particularidade é o surgimento de uma periferia nos países ricos, compartilhando o mesmo drama da degradação e da violência dos países pobres. Na outra ponta, a emergência de uma camada privilegiada nos países periféricos, integrada ao Primeiro Mundo pelos mesmos templos de consumo de alto luxo encontrados em Nova York ou São Paulo.
Segundo o Relatório sobre o Desenvolvimento Humano da ONU, em 1990, os 20% da população mundial que viviam nos países mais ricos tinham uma renda 30 vezes maior que os 20% que viviam nos países mais pobres. Em 2005 essa diferença havia aumentado para 82 vezes.
2 – CONTRASTES ATROZES
As três pessoas mais ricas do mundo possuem uma fortuna superior a toda a produção anual dos 48 países mais pobres, informa "Le Monde Diplomatique". Quase 3 bilhões de pessoas, metade da humanidade, vivem com menos de US$ 2 por dia. Não existe acesso à água potável para quase um terço dos 4,5 bilhões de pessoas que habitam os países em desenvolvimento; 20% das crianças não consomem a quantidade suficiente de proteínas ou calorias; e 2 bilhões de indivíduos - um terço da humanidade - sofrem de anemia.
Enfim, estudos divulgados pelas agências internacionais de desenvolvimento mostram reiteradamente que a América Latina concentra as maiores desigualdades do mundo - e o Brasil apresenta a maior desigualdade social entre os países latino-americanos.
Hoje nos perguntamos sobre que base constitucional, sobre que tábua de direitos, o sistema jurídico da globalização será fundado: se na liberdade dos mercados ou então naquela continuidade dos direitos políticos e sociais propostos pela Declaração Universal. Desse ponto de vista, comemorar a Declaração não será ato formal e de dever, mas compromisso de luta. Uma luta concebida para dar uma resposta justa às multidões que levantam a exigência do reconhecimento de seu direito à vida e à solidariedade social.
O que faz penosa essa marcha são causas tão diferentes quanto diferem os países. De comum a todos, há a resistência do poder econômico, da classe rica, com sua voracidade para centralizar a posse das riquezas, das formas todas de poder e, assim, impor domínio e não equidade. São as sociedades onde os privilégios da minoria, para existirem, restringem os direitos da maioria. Mas as maneiras como se dá essa opressão dos direitos é variada, complexa e quase sempre velada e sutil.
Ninguém dirá que o governo brasileiro é avesso aos direitos prescritos na Declaração cujo aniversário, como por toda parte se vê, saúda como se tivesse, para isso, a mesma autoridade dos governos sueco, dinamarquês, norueguês...
3 – SANGUE DA TERRA
Embora ao governo do presidente Lula da Silva não lhe caiba aquela acusação, nem seus próceres podem negar que as bases teóricas e práticas de sua administração conflitam, amiúde, com numerosos artigos da Declaração que tratam das obrigações socioeconômicas do Estado para com cada pessoa e cada família.
A declaração afirma que "todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e serviços sociais indispensáveis". No entanto, ao tempo em que se produz uma abundância de bens jamais vista, nunca foi tão grande o número de pessoas sem teto, trabalho e comida. O mundo ficou mais rico e mais desigual. Quase três décadas de políticas neoliberais tornaram mais profundo o abismo a separar ricos e pobres.
Conseqüência inescapável: as violações aos direitos humanos continuam pelo mundo afora. Impedir sua prática não é, no entanto, o avanço proporcionado pela Declaração. Nenhum documento teria esse poder. O avanço está na difusão da consciência dos direitos criados pela força só do fato de existir. O texto da Declaração não precisou ser conhecido para oferecer tal consciência. Os seus princípios disseminam-se como grãos de pólen, imperceptíveis e procriativos, que os ventos livres e as correntes de informação levam mundo afora. E um só artigo que germine em uma consciência individual já será suficiente para justificar sua existência.
Mas, e a festa? Como ensinam os sábios antigos, na base de qualquer tábua de direitos sempre há algo de sagrado, resplandecente, alto e terrível de uma só vez. Que o diga Moisés extasiado no monte Sinai. Por trás da Declaração de 1948, a torná-la sagrada, havia duas guerras mundiais e guerras civis que transpassavam o mundo no choque entre as classes sociais. Não trair aquela tábua dos direitos significa lembrar que a Declaração não é um pedaço de papel, mas o produto do sangue da terra. Vale, pois, uma celebração. Solene, mas jubilosa.