Manaus (AM) – Os fortes estampidos romperam o silêncio da madrugada em Porto Velho, capital de Rondônia. Um homem vestido com uma camisa preta de mangas compridas e boné se aproxima da sede do portal Rondoniaovivo e dispara 19 tiros com uma pistola calibre 9 milímetros contra a fachada. Já na Rádio Nova FM, no distrito de União Bandeirantes da capital rondoniense, um coquetel molotov estilhaça uma porta de vidro e as chamam consomem a sede da empresa. Na região Norte do país, as manifestações antidemocráticas que clamam por um golpe militar, iniciadas a partir da derrota do presidente Jair Bolsonaro (PL), miram contra o jornalismo.
Em todo o Brasil, desde a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no segundo turno das eleições, já foram registrados pelo menos 65 episódios de violência política contra jornalistas e comunicadores. A estatística foi publicada no dia 28 de novembro pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Um deles foi o do atentado contra o portal Rondoniaovivo, às 4 horas da manhã do dia 12 de novembro. O fundador da empresa, que tem 18 anos de existência, o jornalista Paulo Andreoli, conta que a hostilidade ao veículo começou quando eles passaram a nominar os protestos como atos antidemocráticos e seus participantes como “golpistas”.
“A mudança editorial foi feita três dias antes do ataque. Com a mudança, o Rondoniaovivo começou a ser atacado pelos golpistas, num trio elétrico em frente ao campo da brigada de selva. Também colocaram o Rondoniaovivo numa lista, assim como uma foto minha”, descreve Andreoli.
Exercer o jornalismo em Rondônia nunca foi tarefa das mais simples. Mas agora o trabalho da imprensa tornou-se alvo de criminosos. Há oito anos, o próprio portal teve um de seus veículos incendiados, mas Andreoli conta que nunca havia vivenciado nada parecido com o que aconteceu na madrugada de 12 de novembro. Depois do atentado, ele diz ter dois sentimentos: o medo e a esperança. “Temo pela minha vida e a dos meus colaboradores. É temeroso, mas tenho esperança num Brasil melhor a partir do fim deste desgoverno”, sentencia Paulo Andreoli.
Enquanto o responsável pelo ataque ao Rondoniaovivo não é preso, os colaboradores têm de redobrar até mesmo o retorno para casa. “Todos estão tentando manter a calma, porém, há certa tensão no ar”, explica o editor-chefe, Ivan Frazão, de 53 anos, com 27 deles dedicado ao jornalismo. “Já trabalhei em vários veículos. Já cobri tiroteios entre polícia e bandidos, mas nunca vi um atentado contra um veículo de comunicação. Posso te garantir que a sensação é horrível, pois percebe que o crime chegou até você. Antes, o trabalho era noticiar e, agora, você é vítima.”
Violência sem fim
No último dia 24, a sede da Rádio Nova FM foi incendiada durante a madrugada. De acordo com relato do proprietário do veículo de comunicação, Genilson José Alencar, uma pedra foi utilizada para quebrar a porta de vidro Blindex do local. Depois de invadirem o local, os criminosos atearam fogo. O atentado teria sido motivado por conta do posicionamento da rádio, que foi contra o fechamento da estrada que dá acesso ao distrito de União Bandeirantes.
O caso envolvendo os atentados ao portal Rondoniaovivo e à Rádio Nova FM estão sob investigação da Polícia Federal de Rondônia, pela suspeita de serem crimes por motivação política. A reportagem da Amazônia Real contactou o superintendente da PF no estado, Rafael Dantas, para obter informações sobre o andamento das investigações. Dantas disse que todos os casos estão sob investigação, mas por ora eles são considerados sigilosos.
No município de Cacoal (a 479,7 quilômetros de Porto Velho), outros ataques foram registrados contra os profissionais que atuam na TV Allamanda, afiliada do SBT, durante a cobertura dos atos antidemocráticos. Jornalista profissional há seis anos, Leir Freitas, que é chefe de jornalismo na TV, foi hostilizada por manifestantes enquanto fazia uma passagem ao vivo para o programa Comando Policial.
Antes dela, um outro repórter da emissora já havia passado pelo mesmo problema com os manifestantes. “A nossa equipe tentou fazer a cobertura. Daí começou a manifestação e o meu repórter não conseguiu (fazer o trabalho), porque hostilizaram ele, o chamaram de petista. Como coordenadora, para proteger o repórter, acabei indo para lá”, relata.
Quando chegou a sua vez de fazer uma passagem ao vivo, uma semana após o início das manifestações, Leir sentiu na pele a hostilidade dos manifestantes. A jornalista conta que eles reclamaram da fala do apresentador Diego Maia, que disse que havia menos pessoas do que no dia anterior, e os manifestantes o acusaram de dizer que o movimento havia “perdido a força”.
“Fizemos uma entrada (ao vivo) tranquila. Falei que não tinha bloqueio na rodovia, que o movimento estava sendo pacífico, mas eles não gostaram”, conta.
Enquanto ela aguardava para fazer a segunda entrada ao vivo, passou a sofrer as agressões. “Começaram a nos hostilizar, nos chamando de comunistas, dizendo que não éramos bem-vindos. Eu não queria sair de lá, mas como só haviam três policiais, eles solicitaram que a gente se retirasse por questões de segurança, para que eles conseguissem manter a nossa segurança”, revelou.
Rádio Nova FM incendiada (Foto: reprodução redes sociais)
Ataques no Pará
Jornalistas do jornal O Liberal, do Pará, também sofreram ataques. O primeiro foi registrado em 15 de novembro, no feriado da Proclamação da República. Na ocasião, os repórteres Fabrício Queiroz e Thiago Gomes “sofreram violência verbal e física durante a cobertura jornalística do protesto, na avenida Almirante Barroso, em Belém”, segundo relatou o jornal.
A violência não parou por aí. No dia seguinte, a repórter Amanda Martins e o fotógrafo Cláudio Pinheiro foram alvo de mais ataques. Os manifestantes voltaram para o local depois de uma ação de desobstrução da calçada feita pela Prefeitura de Belém. O 2º Batalhão de Infantaria de Selva (2º BIS) fica localizado nesta área. Os profissionais foram cercados, xingados e filmados pelos manifestantes. Uma pedra foi arremessada em direção à jornalista, que foi atingida de raspão. De acordo com o jornal, a “situação ocorreu sem a interferência de policiais que estavam no local”.
A reportagem da Amazônia Real tentou contato com os profissionais de O Liberal, mas a empresa se limitou a informar que o setor jurídico já estava tomando as providências sobre o caso.
Em busca dos financiadores
Em Manaus, a repórter da revista Cenarium, Ívina Garcia, de 25 anos, se tornou alvo dos extremistas bolsonaristas depois de uma reportagem que falava sobre os financiadores dos atos antidemocráticos. “Publiquei uma thread no Twitter resumindo a matéria e lá acabou repercutindo e caindo em grupos bolsonaristas (que inclusive eu estava). Com a proporção que tomou, alguns começaram a me xingar e outros já foram além e ameaçaram minha família, descobriram meu número, mandaram mensagens em todas as redes sociais”, conta.
Ívina conta que, no começo, não se importou enquanto os xingamentos estavam apenas na rede social. “Mas a partir do momento que minha imagem e as ameaças começaram a pipocar, passei a me preocupar, principalmente por causa da minha família que não tem nada a ver com isso, e acabou sendo envolvida na história”, relata.
A jornalista mora com a bisavó, de 95 anos, e com a filha, de apenas 5 anos. “Quando isso começou a envolver a segurança delas, com o vazamento do meu número e algumas mensagens dizendo que sabiam onde eu morava, isso me afetou e me senti impotente, sem saber se teria como garantir a segurança dela”, lamenta.
Ívina Garcia conta que registrou Boletim de Ocorrência na Polícia, e que o departamento jurídico da empresa assumiu o caso. Até que as ameaças diminuíssem, ela passou a trabalhar em sistema de home office, e também precisou se ausentar da faculdade. Apesar do medo, a jornalista conta que não pensa em desistir da profissão.
“Somos de um estado violento, com histórico de mortes de jornalistas, então essas ameaças fazem parte, principalmente para quem trabalha com meio ambiente e política. Não quero parecer que estou ‘passando pano’, mas infelizmente a realidade é essa”, diz.
Um outro ataque registrado pela Abraji foi contra a jornalista e apresentadora da TV A Crítica, Mayara Rocha. No dia 10 de novembro ela foi hostilizada por um manifestante em frente ao Comando Militar da Amazônia (CMA), na zona centro-oeste de Manaus. O homem chutou o veículo da emissora e gritou palavras de baixo calão contra a jornalista.
Ameaçada após twitter
Para ser alvo de hostilidades, a jornalista Cyneida Correia, de Roraima, nem precisou pôr os pés para fora de casa. Bastou apenas uma publicação no Twitter onde escreveu: “Que tipo de gente é essa que só aceita o resultado da eleição se for o que eles querem? Gente desocupada que não sabe o que significa #Democracia”.
A publicação foi feita no dia 3 de novembro. Cinco dias depois, viralizou em um perfil bolsonarista. Cyneida Correia conta que a reação foi de medo, principalmente no jornal onde ela trabalha, a Folha de Boa Vista, em Roraima.
“Todo mundo está meio com medo lá, porque eles ficaram chamando as pessoas para ir na frente (do jornal) fazer manifestação para fechar a empresa. E a gente vive num estado que é 70% bolsonarista, então é muito complicado, muito difícil”, desabafa.
A jornalista conta que sofreu inúmeros ataques, ofensas e ameaças nas redes sociais. “As pessoas me chamaram até de mãe de traficante, sendo que o meu filho é jornalista e trabalha como assessor do Ministério Público”, revela. E tudo isso acontece em um período em que a jornalista se recupera de uma cirurgia no estômago.
Cyneida lamenta que o jornalismo tenha se tornado um terreno tão hostil aos profissionais que se dedicam ao ofício. “A gente se preocupa com essa violência. É muito preconceito, é muito ataque, a gente não consegue mais fazer nosso trabalho como fazia antes.”
Apesar de ainda não ter acionado a Justiça, a jornalista conta que pretende levar o caso para frente para que outras profissionais não passem por tudo que ela vem passando.
“A sensação que tenho aqui, com todo mundo com quem falo sobre este assunto, é como se eu tivesse sido estuprada e a culpa fosse minha por ter usado uma saia curta, por ter andado numa rua escura. Como moro num estado bolsonarista é a impressão que eu tenho, porque fiz um comentário contra esses atos antidemocráticos. É como se tivesse me colocado numa situação de risco e merecesse tudo que aconteceu”, revolta-se.
A Abraji cobra o fim do silêncio sobre os ataques contra jornalistas e, para tanto, já recorreu às autoridades dos 18 estados e do Distrito Federal, locais onde ocorreram as violações contra a liberdade de imprensa, para que elas adotem medidas protetivas aos profissionais de imprensa. “A violência política persiste, no entanto, sem a devida responsabilização e diante de um presidente que se mantém em silêncio”, disse a entidade por meio de nota.
Enfrentamento
Para ajudar no enfrentamento à violência contra jornalistas em todo o País, o Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (Obcom), da Universidade de São Paulo (USP), lançou uma nova ferramenta que apresenta a série histórica dos relatórios da Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj). A ferramenta, chamada provisoriamente de “Mapa”, foi desenvolvida pelo programador Otávio Santos.
“Essa ferramenta de busca de dados funciona da seguinte maneira: a gente pegou os relatórios da série histórica da Fenaj, que é a base de dados mais estável sobre violência contra jornalistas, comunicadores, que temos no Brasil”, explica a coordenadora do projeto, Daniela Oswald Ramos, professora da Escola de Comunicações e Artes da USP.
A coordenadora explica que a ferramenta será usada para auxiliar no trabalho de jornalistas, no sentido de entender os padrões de segurança e insegurança, como eles se repetem, quem são os agressores, qual é o gênero dos agredidos, entre outros aspectos. “A ferramenta vai ser alimentada todo ano com o relatório da Fenaj, e vai ser de acesso livre, em português e em inglês para dar visibilidade internacional ao assunto”, pontua.
Para Daniela, a situação do jornalismo no Brasil é preocupante, porque a desinformação poluiu o ambiente jornalístico de forma avassaladora no ambiente digital. “É uma indústria muito bem aparelhada no país, financiada, e bem articulada. O jornalismo está competindo com a indústria da desinformação e isso em si já é uma violência”, analisa.
Para Daniela Osvald, o mau exemplo dado por figuras públicas, um notório inimigo dos jornalistas, transmite aos seus seguidores uma mensagem distorcida. Na prática, essa atitude conduz a um “aprendizado por parte do cidadão comum de que agredir jornalistas é não só certo como desejável”. Ao fim, arremata Daniela, “é o autoritarismo socialmente implantado, como descreve o sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro”.
Denuncie aqui
A Abraji criou um
formulário para que repórteres possam denunciar a agressão sofrida durante a cobertura de manifestações antidemocráticas no país. Os dados pessoais coletados pelo formulário são sigilosos e todas as denúncias serão devidamente apuradas pela equipe da associação.