Na última segunda-feira (31), estreou o remake da telenovela Vale Tudo na Rede Globo. A versão original, um clássico da teledramaturgia brasileira dos anos 80, é considerada um marco na TV. Para muitos — inclusive para mim —, é a melhor telenovela já feita.
Lançada em 1988, Vale Tudo foi criada e escrita por Gilberto Braga, em parceria com Aguinaldo Silva e Leonor Bassères. A trama trouxe personagens marcantes como Raquel (Regina Duarte), Maria de Fátima (Glória Pires), Ivan (Antônio Fagundes) e Heleninha Roitman (Renata Sorrah, impecável). No entanto, a novela ficou especialmente lembrada por uma das vilãs mais icônicas da história da televisão: Odete Roitman, interpretada de forma magistral pela incrível Beatriz Segall.
A nova versão está sendo escrita pela talentosa Manuela Dias, responsável por Ligações Perigosas (2016), Justiça (2016) e Amor de Mãe (2019). Pelo que foi mostrado até agora, a trama segue fiel ao enredo original, com algumas mudanças sutis no roteiro. A produção já vem impulsionando a audiência no horário nobre, especialmente após o fracasso da novela anterior, Mania de Você, de Emanuel Carneiro.
Mas, afinal, o que faz essa telenovela ser considerada uma das melhores — senão a melhor — da história da TV brasileira?
Os temas abordados na novela refletiam o período que o Brasil vivia, trazendo à tona questões como corrupção e falta de ética. A abordagem, até então inédita, tocava em feridas familiares, sociais e empresariais, colocando os personagens principais em uma ciranda de tramas que os levava a enfrentar crises pessoais e dilemas de consciência — ou a total ausência dela — em relação às próprias ações.
O impacto foi imediato, pois a novela retratava o Brasil da época e os desafios que o país enfrentava. Estamos falando dos anos 80, a chamada “Década Perdida”, marcada por crises econômicas e instabilidade política.
A versão original de Vale Tudo foi exibida de 16 de maio de 1988 a 6 de janeiro de 1989, em 204 capítulos. Enquanto a novela era transmitida e escrita, fatos históricos ocorriam no país, principalmente no campo político. O Brasil passava por um processo de redemocratização após o fim da ditadura militar em 1985, com a reabertura política e a anistia dos brasileiros que haviam sido exilados ou perseguidos durante o regime autoritário.
O que se destacava nesse período era que o país estava entrando em uma fase de grandes transformações, não apenas no âmbito político e social, mas também no econômico. O Brasil enfrentava uma recessão que afetava milhões de pessoas devido à estagnação econômica e aos índices absurdos de inflação, que corroíam o poder de consumo da população. Na época, a moeda em circulação era o cruzado, criado pelo Plano Cruzado em fevereiro de 1986, como parte de um pacote de medidas do governo federal para tentar conter a inflação. Embora tenha funcionado inicialmente, o plano logo se revelou um desastre, agravando ainda mais a situação financeira dos brasileiros.
Essa deterioração econômica é retratada na telenovela com requintes de crueldade, especialmente na vida dos personagens de classe média e baixa renda. O conflito central gira em torno de Raquel — honesta e trabalhadora (interpretada no remake pela excelente Taís Araújo) — e sua filha, Maria de Fátima (vivida por Bella Campos, que tem se destacado no papel). Ambiciosa e sem escrúpulos, Maria de Fátima está disposta a qualquer coisa para enriquecer, mesmo que precise aplicar golpes e se envolver com pessoas inescrupulosas. Um exemplo disso é seu relacionamento com César, um garoto de programa e alpinista social (interpretado originalmente por Carlos Alberto Riccelli e, no remake, por Cauã Reymond).
Por se recusar a compactuar com os meios inescrupulosos que a filha usa para ascender socialmente, Raquel acaba se tornando vítima — de forma até ingênua, afinal, é mãe. Maria de Fátima, aproveitando-se do fato de que a casa onde vivem está em seu nome (um presente do avô), vende o imóvel sem que a mãe saiba, deixando-a sem nada. Em seguida, parte para o Rio de Janeiro em busca de fama e fortuna, impulsionada por sua ambição desmedida.
Com essa premissa inicial, conhecemos outros personagens desse universo telenovelístico, que representam diferentes classes sociais e momentos da sociedade. Um deles é Ivan (interpretado no remake por Renato Goés, assumindo o papel que foi de Antônio Fagundes), um profissional que se muda de São Paulo para o Rio de Janeiro por causa de um emprego, mas descobre já no primeiro dia que foi demitido devido à crise econômica do país.
Essa abordagem da realidade brasileira se destaca na versão original de Vale Tudo, lançada em 1988, e se reflete com força na icônica abertura da novela. Ao som de Brasil, de Cazuza — interpretada de forma magistral por Gal Costa —, a canção ecoava um grito de revolta que ainda ressoa nos dias de hoje:
Brasil
Mostra tua cara
Quero ver quem paga
Pra gente ficar assim
Brasil
Qual é o teu negócio
O nome do teu sócio
Confia em mim
O remake não trará de volta os anos 80, mas, ao analisarmos como o texto original escancarava as intempéries políticas, econômicas e sociais da época, surge a pergunta: o que de fato mudou em relação ao padrão de vida que enfrentamos hoje?
Tivemos avanços políticos, educacionais e sociais, como a criação do SUS, a conquista de direitos para minorias — negros, idosos e mulheres (antes sem amparo legal de leis como a Maria da Penha e a tipificação do feminicídio) —, além de programas como ProUni, Fies e Sisu. A tecnologia também evoluiu, proporcionando intercomunicação instantânea por meio da internet e de dispositivos eletrônicos portáteis, como smartphones e tablets.
No entanto, a desigualdade econômica, a concentração de riquezas e as dificuldades que o dinheiro pode ou não proporcionar continuam tão enraizadas quanto antes — senão ainda mais evidentes.
São esses temas, fatos, situações e dramas do cotidiano brasileiro que ainda sustentam o remake de uma novela que, em sua época, retratou a realidade como nunca antes feito. Hoje, essa nova versão tem respaldo para abordar questões que continuam atuais e universais dentro da semiótica brasileira.
O Brasil segue refém de seus próprios problemas cotidianos. Vale Tudo escancara essa realidade, retratando com precisão a divisão de classes: os bem-sucedidos, que ainda comandam o país, e aqueles que dependem deles para empregos, recursos e influência.
Odete Roitman (interpretada no remake por Débora Bloch) personifica essa elite dominante. Poderosa e milionária, dona de uma empresa que emprega centenas de pessoas, ela despreza o país onde nasceu — preferindo viver na Europa — e busca manter controle absoluto sobre sua família e os que a cercam. Se possível, destina-lhes papéis que os mantenham sempre abaixo de seu status. Sua figura é um retrato fiel — e até metafórico — dos poderosos que governam nos bastidores e rejeitam qualquer forma de dependência externa.
Esse é o retrato que mantém a personagem atual e atemporal, simbolizando a elite caricata — e, por vezes, nem tanto — que dita as regras em um país de profundas desigualdades. O conflito de classes, tão bem explorado pela telenovela, continua sendo um dos principais motores da nossa sociedade.
Além disso, Vale Tudo se destaca por sua abordagem nada convencional de finais felizes. A moralidade da trama não segue o caminho tradicional em que o bem sempre vence. Pelo contrário, muitas situações são resolvidas de forma dura e realista — algumas para o lado do mal ou, melhor dizendo, para as consequências naturais da vida real. Esse gosto agridoce entre ficção e realidade influenciaria diversas outras novelas, até mesmo dentro da própria Globo.
Já faz tempo que deixei de ser telenoveleiro. A mediocridade dos roteiros e a reciclagem exaustiva de clichês pouco oferecem de novo ou cativante. Mas Vale Tudo, a nova novela da Globo, traz um sopro de renovação ao reciclar temas que o Brasil parece nunca deixar morrer: economia e ética — para o bem ou para o mal.