Imagine um produto que reúna os aminoácidos essenciais para o crescimento, micro nutrientes que previnem o câncer, a catarata, o envelhecimento e ativam as atividades cerebrais. Este produto existe, é um alimento vegetal, brasileiro, pode ser consumido in natura, em forma de bolacha, biscoito, salgadinho tira-gosto ou cereal matinal com formas, cores e sabores diversificados. É a castanha-do-brasil (Berthollitia excelsa), também conhecida como castanha-da-amazônia ou castanha-do-pará. Este arsenal de saúde, por enquanto, está rotineiramente ao alcance dos moradores da Amazônia, a região produtora da castanha, e dos países importadores.
Em outras regiões do Brasil, a castanha ainda é só um produto da cesta natalina. Mas a sua popularização parece ser uma questão de tempo. Uma pesquisa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), além de ajudar a divulgar as propriedades nutricionais da castanha-dobrasil, chegou à fórmula capaz de transformá-la em produto de larga aceitação pelos consumidores e forte apelo comercial. Um cereal matinal é o fruto de uma pesquisa de três anos que valeu a Maria Luzenira de Souza, da Universidade Federal do Acre, o título de Doutora em Tecnologia de Alimentos.
O processo de beneficiamento começa com a redução, por prensagem, da quantidade do teor de óleo da castanha, de 68% para 25%. O óleo, de altíssima qualidade, é comestível e está sendo usado também como matéria-prima de produtos farmacêuticos e cosméticos como sabonetes. À torta - o resíduo da prensagem - se acrescenta a farinha de mandioca, na proporção média de 70% de castanha e o restante de farinha. A farinha de mandioca ajuda a diluir o teor de óleo que ainda fica na castanha e a aumentar o teor de fibras. “Conseguimos o que pretendíamos: um produto menos calórico do que a amêndoa e de alto valor protêico”, explica a pesquisadora. Para ela, a castanha-dobrasil pode, tranqüilamente, substituir a soja como fonte de proteínas, alternativa à carne, ou ser consumida associada à soja. “A castanhado-brasil é a carne vegetal. Duas castanhas correspondem à proteína de um ovo, considerado a proteína completa, com a vantagem de, como alimento vegetal, não conter colesterol”, garante Luzenira.
Para a doutora em Tecnologia de Alimentos da Unicamp, Hilary Castle Menezes, orientadora da tese, “a castanha não é remédio, mas um alimento funcional importante na prevenção de doenças, de crianças até os mais idosos”. A proteína da castanha tem aminoácidos essenciais para o crescimento, daí a importância dessa oleaginosa na alimentação infantil. A castanha é rica em selênio, elemento protetor, cuja falta está diretamente relacionada a doenças como aterosclerose, artrite, cirrose, enfisema e câncer. Pesquisadores da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, descobriram, ainda, que o selênio interage com a química do organismo para oferecer proteção contra as células cancerígenas, especialmente na mama.
Absorvido em valores altos, porém, o selênio é tóxico, alerta a pesquisadora da Unicamp. “Bastam uma ou duas castanhas por dia – dependendo do tamanho delas - para suprir a necessidade desse mineral no nosso organismo. Só quem come castanha exageradamente pode ter problemas”. A técnica de extrusão utilizada na pesquisa para fazer o cereal matinal não retira da castanha nenhuma de suas proteínas, vitaminas e minerais. Pelo contrário, a alta temperatura utilizada no processo elimina microrganismos prejudiciais à saúde, como os fungos que produzem a aflatoxina e outras micotoxinas, explica Hilary. Só não elimina as micotoxinas produzidas antes da extrusão, por isso é importante cuidar das condições de umidade das castanhas durante todo o processo, da coleta na mata à mesa do consumidor.
O fabricante pode fazer o produto a gosto do freguês. Com pequenos ajustes na máquina, o cereal pode ter vários formatos, receber outros componentes, sabores doces ou salgados e aromas diversos. Durante a fase de pesquisa todas as variantes do cereal foram testadas e aprovadas por um grupo de 40 provadores, entre professores, alunos e funcionários da universidade. “Todas as opções foram plenamente aceitas e todos os voluntários manifestaram a intenção de comprar o produto quando estiver à venda”, conta Luzenira de Souza.
Uma indústria de Rondônia assinou com a Unicamp contrato de licenciamento para fabricar o cereal à base de castanha-do-brasil por
encomenda do governo estadual, para a merenda escolar. "A pesquisa foi só o pontapé inicial. Fizemos nossa parte. Agora, é com a indústria e com os consumidores, para que os valores nutricionais e medicinais da castanha estejam ao alcance de todos os brasileiros", conclui Hilary Menezes.
Tais estudos sobre as propriedades nutricionais da castanha podem ser a “salvação da lavoura” para o produto, que enfrenta problemas no mercado nacional, com queda de produção e declínio das exportações. Graças ao selênio, a castanha-do-brasil tem chances de se firmar como importante produto geriátrico e parar de perder mercado para as oleaginosas concorrentes: castanha-de-caju e amendoim, no Brasil, e nozes, avelãs e amêndoas, no exterior. Se o mercado de fato se firmar, a expansão do plantio será inevitável, como aconteceu com o guaraná, o cupuaçu e o jaborandi, entre outros produtos amazônicos, acredita o biólogo Alfredo Kingo Oyama Homma, da Embrapa Amazônia Oriental com sede em Belém, Pará.
Mas é bom não esperar de braços cruzados. O pesquisador adverte que “uma indústria internacional de cosméticos já está comprando óleo de castanha dos índios Caiapós e, em surdina, andou patenteando o produto, para fins de cosmetologia”. Homma estranha que a questão não tenha merecido, por parte da imprensa, o mesmo tratamento dado ao caso da empresa japonesa Asahi Foods com o cupuaçu. Não há notícia de patentamento de castanha para uso alimentício, mas o Brasil ainda precisa fazer muita lição de casa para assegurar a sua fatia de mercado.
Na exportação, por exemplo, andamos perdendo terreno por culpa nossa: nos últimos anos, muitos lotes foram devolvidos por contaminação pela aflatoxina, considerada uma substância cancerígena. Quando o ouriço despenca lá do alto da castanheira e racha, precisa ser recolhido logo, senão a umidade penetra e favorece aparecimento do fungo que produz a afloatoxina. No Acre, desde 2000 a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) faz um trabalho de campo para identificar os pontos da cadeia produtiva mais suscetíveis à contaminação por aflatoxina, além de fazer testes de secagem para prevenção do fungo e desenvolver equipamentos para o tratamento da castanha. O Ministério da Agricultura deve definir normas para regulamentar a certificação das diversas etapas da cadeia produtiva, enquanto os estados produtores investem na capacitação de técnicos. Investimentos semelhantes foram feitos na vizinha Bolívia, com bons resultados.
Questão mais difícil e de solução demorada é reverter a redução dos castanhais. Só no Sudeste do Pará, nas últimas três décadas, 70% das castanheiras foram derrubadas, para dar lugar a pastagens, projetos de assentamento, minerações e outros. Em conseqüência, a produção regional despencou de 22 mil toneladas em 1973 para menos de mil toneladas em 2003.
Legalmente, a castanheira é a árvore amazônica mais protegida. Mas, na prática, as leis são inócuas. Nas derrubadas autorizadas, as castanheiras são poupadas e permanecem no meio das pastagens ou culturas. Uma vez isoladas da floresta, porém, apresentam rápida queda de produção. Isso se dá, segundo a pesquisadora Cleísa Cartaxo, da Embrapa do Acre, porque a polinização da castanheira é cruzada e feita por insetos: cada castanheira em flor necessita ter por perto uma outra castanheira em flor para ser fecundada. O trabalho é realizado por insetos polinizadores, que, por sua vez, precisam transitar de uma planta para outra, como numa mata contínua, pois não conseguem atravessar o espaço sem árvores das áreas agrícolas. E se abelhas e mamangavas não conseguem levar o pólen de uma castanheira a outra, cai vertiginosamente a produção de castanhas.
“Isso sem contar a ação do fogo para a formação e renovação das pastagens que ‘acidentalmente’ mata as árvores”, lembra a pesquisadora. Por lei, as castanheiras classificadas como mortas ou improdutivas podem ser cortadas. Daí a prática comum de deixar o fogo se aproximar das árvores isoladas nas pastagens, ano após ano, na época da limpeza com uso de fogo. A castanheira é resistente, mas com o tempo e a freqüência das queimadas acaba morrendo em pé. Aí é só pedir autorização para cortar a árvore morta.
Nos desmatamentos ilegais, como a madeira das castanheiras é valorizada, muitos madeireiros recorrem ao expediente de retirar a casca das toras antes de transportálas para as serrarias. Assim dificultam o reconhecimento da espécie por fiscais. Para o pesquisador da Embrapa, Alfredo Homma, a par da contenção dos cortes ilegais, o país deveria investir na domesticação das castanheiras, ou seja, no plantio racional e na pesquisa de produtividade, como já se faz com o cacau, a borracha, o guaraná, o cupuaçu, a pupunha etc.
“O grande problema de plantar castanheira é que leva tempo -entre 15 e 20 anos - para começar a produzir, e existem alternativas econômicas mais lucrativas”, explica Homma. A tecnologia já foi desenvolvida pela Embrapa e aprovada pela colônia japonesa de Tomé-Açu: castanheiras plantadas na década de 80 hoje produzem tanto quanto as nativas, na floresta.
Outras medidas, que vêm sendo tomada por iniciativa de governos estaduais, ongs e das próprias comunidades extrativistas, são a exploração racional das reservas e a agregação de valores com o beneficiamento do produto. No Amapá, o Instituto de Estudos e Pesquisas do Amapá (IPEA) desenvolve novos produtos e processos de padronização e controle de qualidade e repassa a tecnologia às cooperativas, ajudando a verticalizar a produção da castanha e seus subprodutos. Os castanheiros estão conseguindo se livrar da dependência do atravessador, para quem trabalhavam muitas vezes a troco de uma lata de leite, e vendem o produto para as cooperativas. Nas usinas de beneficiamento as castanhas são desidratadas com casca, para evitar a contaminação por fungos.
Nas fábricas artesanais, os cooperados fazem biscoitos, farinha, paçoca e produzem óleo, de uso comestível ou cosmético. O governo estadual, que antes comprava toda a produção de castanha para a merenda escolar, hoje responde só pela metade do faturamento das cooperativas.
No Acre, a castanha ainda é vendida, predominantemente, na forma de matéria-prima, na casca. Para não perder mercado, o governo está investindo nas cooperativas e, pelos cálculos da Embrapa no estado, dentro de dois anos 90% da produção será transformada em produtos como biscoitos e óleo.
“O Acre não tem o menor interesse em exportar sua castanha com casca”, anunciou o governador Jorge Viana durante reunião com o presidente interino da Bolívia e empresários do setor castanheiro, no mês passado. A ong WWF-Brasil trabalha, no Acre, com o manejo sustentável da castanha e certificações florestal e orgânica, em parceria com a Capeb – uma cooperativa central de pequenos produtores - e a Ecoamazon. E pelo menos duas fábricas de beneficiamento de óleo já foram construídas – em Brasilândia e em Xapuri – para agregar valor ao produto.
O fim do desmatamento nas áreas produtivas, o plantio e o extrativismo racionais e a aplicação das novas tecnologias podem garantir que a exploração da castanha-do-brasil seja economicamente viável, ecologicamente sustentável e socialmente justa. E que as porções de saúde em forma de derivados, como o cereal matinal, cheguem à mesa de todos os brasileiros. A direção está dada e os meios são conhecidos.