Política em Três Tempos
1 – LÓGICA DA FOLIA
Já é lugar comum dizer que no Brasil tudo acaba em samba. Em especial, como é para lá de ululante, no carnaval - essa gigantesca festa popular, que, desde a primeira metade do século passado, se constituiu em uma espécie de ícone da nacionalidade brasileira e dessa posição pareceu não perder mais o lugar. Como fenômeno humano, a tradição é antiga e se perde na bruma do tempo. É geralmente associada a festividades durante as quais o católico estava autorizado a consumir carne ("carnelevarium"), antes do período de austeridade alimentícia observado durante a Quaresma. Pode ser também o prolongamento das saturnálias, festividade pagã que constava no calendário romano da Antigüidade.
O fato é que, em alguns países - como o Brasil -, o carnaval tornou-se uma grande festividade nacional e popular. Historiadores e sociólogos não têm uma única teoria para explicar a importância que o carnaval passou a ter para os brasileiros, mas todos concordam que ele promove uma ruptura provisória da hierarquia social, com ricos e pobres, homens e mulheres, adultos e crianças transgredindo ou dissolvendo símbolos de gênero, poder ou classe.
Papéis se invertem e identidades se alteram nesses dias em que a sociedade concede a si própria o direito de suspender algumas das regras que normalmente orientam o cotidiano. Durante o carnaval, pobre se fantasia de rico; rico, de pobre; homem, de mulher. O carnaval vira o mundo de cabeça para baixo. Não é desordem. É uma outra ordem, descanso consentido da posição social desconfortável que prevalece no resto do ano: por uma semana, o pobre manda e não é mandado; e o rico disfarçado de pobre se protege da cobiça. Era para ser assim, já que nos tempos que correm as diferenças de classes estão cada vez mais evidentes também no carnaval, descaracterizando por completo o sentido germinal da festa.
Se isso tudo faz pouco sentido, a conseqüência é reconhecer, em primeiro lugar, que falar em um carnaval, apenas, é esquecer a riqueza de sua transformação e o diálogo que se estabelece entre carnavais diversos, como os de Recife, de Salvador e do Rio de Janeiro. Outros tempos, outros carnavais. Cada um brinca como pode – ou como deixam.
2 – APELOS À PAZ
Como uma das primeiras e mais atrozes conseqüências, de uns tempos para cá, a novidade dos carnavais tem sido o que os tambores parecem cada vez mais insistir - a paciência do brasileiro com a violência ultrapassou o limite do suportável. Sem lideranças políticas e sem um comitê central de campanha, montou-se no país, espontaneamente, um desfile-passeata de protesto, alegre e vestido de branco. Um ano desses aí, a televisão mostrou lenços brancos sendo distribuídos no sambódromo, no Rio, onde a maioria das escolas que desfilaram pelo grupo especial entoou enredos cujo tema era a paz.
A Mocidade Independente saudou Dalai Lama, Luther King e Gandhi. Em um de seus carros alegóricos, estava Marcelo Yuka, o integrante do grupo “O Rappa” que, atacado por assaltantes, ficou tetraplégico. Por trás do que se viu nos enredos, havia uma trama política. Graças ao forte espírito comunitário, o Rio tornou-se, no Brasil, a pioneira das mobilizações populares contra a violência, da reação ao crime organizado e às guerras nas favelas. Serviu como espécie de incubadora de iniciativas como a entidade “Sou da Paz”, em São Paulo - uma organização não-governamental que, aliás, costuma sair numa das escolas da capital paulista.
Indignados com freqüentes assassinatos de jovens e assustados com a crescente violência no carnaval, foliões de todos os matizes exigem eficiência policial, chamam a atenção dos pais e alertam sobre a atuação de gangues que ameaçam a tranqüilidade das centenas de milhares de jovens da classe média que se divertem nos bares e restaurantes durante a festa. E, assim, nutrem os pavores noturnos nas conversas recorrentes dos pais sobre a dificuldade de dormir enquanto os filhos não chegam em casa.
Quando a maior festa da alegria é embalada pelo ritmo do medo, produz-se um enredo de demanda por civilidade. Mais do que o desemprego, os baixos salários ou a miséria, o sossego nas ruas passou a ser a principal reivindicação, de ricos e pobres, nas cidades brasileiras. Sobretudo porque gera fenômenos inimagináveis.
3 – NOTAS TRISTES
Incrível país é o Brasil: consegue ter apartheid até no carnaval. Quem primeiro botou a boca no trombone foi o compositor Carlinhos Brown que, cansado de ver brigas na folia, reclamou diretamente com o então ministro Gilberto Gil. O apartheid, no caso, funciona assim: quem tem dinheiro compra um abadá, a vestimenta que dá direito a entrar numa determinada área. Quem não tem, fica espremido no meio da massa, o que seria a origem das brigas e tumultos, que irritaram não apenas Brown, mas a opinião pública.
Na prática, o apartheid festivo reproduz o que Gilberto Gil chamou de apartheid institucional, presente em várias outras geografias e setores. Exemplo claro: a educação pública. Enquanto o acesso à escola pública estava restrito, para todos os efeitos práticos, à classe média (e aos ricos, se assim o desejassem), funcionava uma maravilha. Na medida em que se deu a expansão para os mais pobres (necessária, desejável e justa - é bom que se diga), não vieram juntos o aparelhamento e os recursos necessários para manter a qualidade do ensino. A classe média foi se afastando e a degradação se instalou, até agora irremediavelmente.
No carnaval, é um pouco assim: à medida que a classe média (e alguns ricos) vai aumentando sua presença nas ruas, vai-se criando cordão de isolamento para manter o andar de baixo à margem. O apartheid na folia gera apenas brigas; o apartheid institucional é um dos pais (embora não seja o único) da criminalidade. Os exemplos estão por toda parte, indistintamente, como bem o demonstra a polêmica do carnaval de Ji-Paraná de que alguns sites de notícia dão conta. Isso para ficar apenas num exemplo de uma situação generalizada de que não escapam nem mesmo as celebrações da época de um lugar remoto destas profundezas das selvas amazônicas.
Invariavelmente, porém, o carnaval é um feriado marcado por problemas - do consumo desmedido de álcool ao aumento de acidentes rodoviários, passando pelo sexo não-seguro. Não é preciso lembrar que se aplica a este período a mesma lógica própria a toda e qualquer festa. Ela pode ser aprazível, apesar dos riscos de excessos. Voltar à rotina da Quaresma sem traumas e acidentes depende certamente de muitos fatores, mas acima de tudo do bom senso de cada um. A questão é que bom senso e carnaval são termos que dificilmente caminham juntos.