A definição dos termos “Catfishing” e “Catfish” no moderno dicionário da IA do Google está lá:
Catfishing é a prática de criar uma identidade online falsa, usando imagens e informações de outra pessoa, com o objetivo de enganar e manipular vítimas, muitas vezes para obter benefícios financeiros, emocionais ou sexuais. Um "catfish" é o indivíduo que cria e mantém essa persona falsa em redes sociais, aplicativos de namoro e outros ambientes online.
Escrito isso, se você for assistir ao chocante documentário disponibilizado na plataforma de streaming da Netflix desde o dia 29 de agosto, “Número Desconhecido: Catfishing na Escola”, prepare seus nervos e sua indignação para uma das maiores reviravoltas de um caso de perseguição online via mensagens para um casal de adolescentes em uma minúscula cidade interiorana nos EUA.
O crime de assédio mostrado aqui foi um dos mais bárbaros já ocorridos, devido ao resultado da investigação, quando finalmente se chegou à pessoa responsável.
O filme, dirigido por Skye Borgman, é notável por trazer todas as pessoas envolvidas no caso — vítimas, suspeitos e a principal figura que mobilizou até o FBI — reunidas em entrevistas que relatam todo o desenrolar desse crime que teve início em outubro de 2020, quando acompanhamos um casal de estudantes de 13 anos do ensino médio, Lauryn Licari e Owen, na cidadezinha de Beal City, em Michigan, que logo na abertura é citada por uma das vítimas como uma comunidade pequena, com 400 habitantes, uma via principal, um semáforo, uma única escola e onde todos se conhecem e convivem.
Devido ao clima bucólico e às poucas opções de diversão na localidade, o celular e o uso frequente das redes sociais eram o meio alternativo mais comum da comunidade para se entreter.
É nesse ambiente aparentemente pacífico que somos conduzidos a nos encantar com a bonita história de amor construída por Lauryn e Owen, juntos na escola desde crianças, com as duas famílias próximas e encantadas pela formalização do namoro no início do ensino médio, atraindo inclusive a atenção dos colegas da escola.
Porém, ao ser mostrado o auge fofo do relacionamento, surgem mensagens para o casal enviadas por um personagem desconhecido, de um número não registrado, em que Owen recebe o aviso de que sua namorada, Lauryn, não o merece e que ela é sem graça. Ao mesmo tempo, Lauryn também recebe mensagens de que Owen a estaria traindo com alguém muito próximo dela e que deveria cair fora.
A partir desse início estranho, o casal passa a sofrer com mensagens de intrigas, fofocas e provocações que vão incomodando, pois algumas dessas mensagens dão pistas de que alguém muito próximo, da roda de amigos ou conhecidos, parece conhecer cada passo dos dois. O que no início parecia uma provocação e perseguição atípica vai tomando proporções ofensivas. Quando os pais são alertados por eles dessas mensagens, logo avisam a direção da escola sobre a situação, e a polícia local é acionada, com o delegado encarregado tomando ciência das mensagens e de como isso vem trazendo transtornos tanto para os jovens quanto para os pais.
O documentário reúne depoimentos do casal, do delegado, dos pais, do diretor da escola, de professores e dos colegas. Surgem logo alguns suspeitos de quem poderia estar por trás, principalmente uma outra adolescente que não é simpática a Lauryn: Kloe, uma garota quieta, mas que tem uma rivalidade natural nas aulas de educação física. Segundo alguns colegas próximos, ela havia se incomodado quando Owen assumiu o relacionamento com Lauryn.
Kloe, filha de um policial, nega ser a responsável pelo assédio, mas ainda assim tem o celular periciado. Depois, é convocada para um depoimento com o delegado, acompanhada dos pais. Outra menina também entra na lista de suspeitos posteriormente.
O modo como o diretor constrói a narrativa em cima da investigação é direto, sem qualquer arroubo extraordinário que aponte para o sensacionalismo comum nesses casos ou que engendre um apuro mais detalhado.
É um escopo investigativo restrito àquela comunidade. Parece pequeno ou banal, no entanto, quando o filme delineia o acúmulo dos fatos e como isso vai afetando a vida dos envolvidos, apresentando-os em ordem cronológica, percebemos que a situação de perseguição tanto contra Lauryn quanto contra Owen vai tomando uma proporção sádica, criminosa e com incitações à violência e até mesmo ao suicídio. Somos fisgados pelo absurdo da obsessão do criminoso em perseguir o casal com uma fúria sem fundamento.
O absurdo chega a um ponto em que essa perseguição virtual por mensagens dura dois anos, com Owen chegando a receber mais de 40 mensagens por dia dessa pessoa, sem que fosse possível identificar a origem de quem as enviava. Com a polícia inoperante no caso e suspeitos invalidados por perícias ou interrogatórios, o mistério só aumentava.
O ápice ocorre quando Owen e Lauryn terminam o relacionamento por conta dessa perseguição, acreditando que seriam esquecidos, mas tudo piora ainda mais. Após uma pausa, as mensagens retornam ainda mais incisivas. No caso dele, a perseguição é pior, pois, quando Owen consegue namorar uma garota de outra cidade e vai até o local para conhecer os pais dela, a mãe da nova namorada recebe mensagens de ameaça, afetando diretamente o relacionamento. Como o assediador conseguiu o contato da mãe da nova namorada? Por que não era possível identificar quem enviava essas mensagens?
São dúvidas que martelam na cabeça de quem assiste, mas o caso acaba chegando ao FBI quando Owen cogita cometer suicídio caso o assédio continue, a ponto de sua mãe entrar em desespero e choque. Já Lauryn é incitada pelas mensagens a se matar, a tirar a “sua vida insignificante”.
O absurdo está em vermos que, em um período de praticamente dois anos, essa pessoa conseguiu mexer com toda uma cidade, mobilizar a polícia e afetar a vida das famílias e até parte da população, tudo por conta das mensagens enviadas a dois jovens.
Com o FBI em cena, as investigações tornam-se mais rigorosas e técnicas, pois um agente especialista em crimes de ameaça cibernética utiliza todo o aparato de comunicação a que tem acesso para tentar descobrir a origem das mensagens e, assim, chegar ao criminoso.
Não darei spoiler, mas é no terço final do documentário que entra a parte mais chocante, o clímax do espanto, quando, com o uso de câmeras corporais e um mandado de apreensão de equipamentos, acompanhamos os agentes do FBI com a polícia indo até a residência da pessoa responsável pelas mensagens, já com nome e endereço do grande culpado.
A reviravolta é mostrada sem cortes. Com as câmeras corporais, vemos perplexos a confissão da pessoa, sem atrelar as motivações no início. Para tornar o documentário ainda mais espantoso, percebemos que, depois dessa revelação, outras reviravoltas vão ocorrendo — tudo tão fora de propósito que parece inacreditável.
O documentário registra o absurdo de ter sido catalogado um calhamaço de mais de mil páginas com todas as mensagens enviadas a Lauryn e Owen em quase dois anos. Foi com esse documento em mãos, revisando cada mensagem uma a uma, que se verificaram pistas que levaram ao responsável.
Logo após a revelação, somos conduzidos ao confronto entre os envolvidos, à perplexidade da cidade e ao julgamento. É impossível não se sentir revoltado com todo odesenrolar e a conclusão do assédio cibernético. Para piorar, ao verificarmos as motivações — que nunca ficam claras —, tornam-se óbvias algumas teorias, entre elas até mesmo a de pedofilia.
Não deixe que ninguém lhe conte ou revele detalhes sobre a pessoa responsável por quase destruir a paz de uma pequena cidade e por tentar conduzir dois adolescentes à morte, adolescentes que jamais compreenderão as razões dessa mesma pessoa.
“Número Desconhecido: Catfishing na Escola” é atualmente o documentário mais assistido da Netflix e vem provocando discussões nas redes sociais, com muita gente relatando ter ficado chocada com a revelação.