Quando Miguel Nicolelis, um dos neurocientistas mais respeitados do mundo, afirma que vivemos “o maior delírio coletivo da história da humanidade”, o alerta não vem do negacionismo tecnológico, mas da ciência. Em entrevista recente à CartaCapital, o pesquisador brasileiro fez duras críticas ao modo como a chamada Inteligência Artificial vem sendo apresentada ao público e explorada pelo mercado.
Em meio à corrida do ouro promovida pelas Big Techs, Nicolelis joga um balde de água fria na narrativa dominante. Para ele, a sigla “IA” tornou-se um poderoso instrumento de marketing, usado para vender uma ficção que pouco dialoga com o que a ciência entende como inteligência. O resultado é um ambiente de euforia, promessas exageradas e expectativas desconectadas da realidade.
Um dos principais pontos levantados pelo cientista é o erro conceitual. Segundo Nicolelis, o que hoje se chama de Inteligência Artificial não é, de fato, inteligência que ele define como uma propriedade emergente, biológica e não computável. Tampouco seria “artificial”, já que esses sistemas dependem intensamente do trabalho invisível de milhões de pessoas responsáveis por alimentar, treinar e corrigir algoritmos.
Outro aspecto central da crítica é o caráter ideológico do projeto. A suposta revolução tecnológica inevitável, diz ele, esconde um objetivo bem mais concreto: a automação máxima. Não se trata de libertar a humanidade para atividades mais criativas, mas de reduzir custos, eliminar postos de trabalho e ampliar margens de lucro.
Nicolelis também chama atenção para o custo real desse processo. A promessa não é a transcendência humana, mas o “lucro infinito”, sustentado pela captura massiva de dados em escala planetária. O preço pode ser alto: desemprego em massa, aprofundamento das desigualdades e a formação de bolhas especulativas semelhantes às já vistas em outros ciclos de euforia tecnológica.
O neurocientista deixa claro que não se trata de negar a utilidade dessas ferramentas. Elas existem, funcionam e podem ser extremamente úteis em diversas áreas. O problema, segundo ele, é confundir ferramenta com milagre. “O objetivo final da dita inteligência artificial não é tecnologia, mas uma visão ideológica: é a automação”, resume.
Nesse contexto, o primeiro produto do atual “barato” tecnológico não é o aumento da produtividade individual, mas a substituição da força de trabalho humana sem qualquer plano social consistente para lidar com as consequências.
Enquanto o brilho da inovação encanta, Nicolelis convida a sociedade a olhar além do truque. Afinal, no espetáculo da tecnologia, tão importante quanto admirar a mágica é observar atentamente as mãos do mágico.