A proposta do governo de controlar ONGs e barrar suas atividades em nome de “interesses nacionais” é inconstitucional, avaliam Aline Gonçalves da Silva e Eduardo Pannunzio, do Grupo de Pesquisa de Organizações da Sociedade Civil da FGV Direito SP. Os dois afirmam que já existem processos para criação e controle dessas organizações. Lembram, ainda, que a abertura de uma entidade deste tipo depende da elaboração de estatuto, registro em cartório, entre outras burocracias, mas não requer aval estatal. Além disso, só a Justiça pode suspender ou dissolver uma associação assim.
O termo ONG não existe na legislação brasileira. As organizações conhecidas por este nome, porém, são entidades privadas, sem fins lucrativos, que têm objetivos sociais. Caso a associação ou fundação receba verba pública, o controle sobre as atividades é maior e envolve o Ministério Público. Os pesquisadores dizem ainda que o Executivo não pode delimitar o que é interesse nacional. “Para a Constituição, a proteção do ambiente é um interesse. Atribuição não só do governo, mas da sociedade. As organizações talvez tenham histórico melhor do que o governo na defesa desse interesse nacional”, disse Pannunzio. “Apresentar outra visão sobre desenvolvimento econômico da Amazônia não é uma proibição (para criar uma associação ou fundação). Ter opinião contrária à do governo não é ilícito”, emendou Aline.
A ideia preocupa ambientalistas, mas não surpreende. A porta-voz de Políticas Públicas do Greenpeace, Luiza Lima, afirma que o governo expressa há tempos o desejo de limitar o trabalho das ONGs. “Lamentavelmente, estamos diante de indícios de que o governo Bolsonaro não compactua com preceitos básicos de democracia e participação social”, afirmou ela.
“Não querem passar pelo crivo do povo e pretendem se impor sem diálogo com a sociedade”, disse Ariana Ramos, do Instituto Socioambiental (ISA).
Mourão e ministros se reuniram em sessão do Conselho da Amazônia na última terça-feira. Integrantes do grupo receberam naquela data o mesmo documento obtido pelo Estadão. À imprensa, o vice-presidente disse que o encontro serviu para delimitar o planejamento do colegiado, que tem “três grandes objetivos estratégicos gerais”: preservação, proteção e desenvolvimento sustentável.
Cada tópico foi discutido em subcomissões e tem “objetivos operacionais”, com “metas” e “ações setoriais”. A tutela das ONGs está dentro da discussão sobre “proteção”. O próximo passo do grupo de Mourão é reunir técnicos de diversos ministérios para traçar o prazo de entrega de cada objetivo.
Parte dos conselheiros só soube da proposta de tutela das ONGs após receber o documento, na terça. Duas autoridades que acompanham as reuniões dizem que militares e representantes da Agricultura divergem sobre a condução dos trabalhos no Conselho. O último grupo teme a paralisação dos debates por críticas a propostas, como a de controle das ONGs.
O Estadão teve acesso à apresentação feita por um subordinado de Mourão na reunião do Conselho. No documento, a Amazônia é tratada como “espaço vital” para o mundo por possuir “recursos estratégicos”, cobiçados por países como Inglaterra, França, Estados Unidos e Alemanha. Procurados, os ministérios da Justiça, Relações Exteriores, Meio Ambiente, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e a Vice-Presidência não se manifestaram.
Organizações evangélicas
Apesar de apontar as ONGs como culpadas até por incêndios na Amazônia e planejar tutelá-las sob o argumento de defender os “interesses nacionais”, o governo mantém relação amistosa com algumas dessas organizações. Nos planos do Conselho Nacional da Amazônia Legal, inclusive, existe a ideia de “potencializar a bioeconomia” ao valorizar o “capital intelectual” de centros de pesquisa, universidades e ONGs.
Entidades sem fins lucrativos receberam R$ 5,48 bilhões do governo em 2020, segundo dados do Portal da Transparência. A maior beneficiada é a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), que levou R$ 709,9 milhões. A terceira colocada é uma ONG: a Missão Evangélica Caiuá, que presta atendimento médico a comunidades indígenas e recebeu R$ 163 milhões. O governo federal terceiriza esses serviços para a entidade desde gestões do PT.
Em 2019, o Estadão encontrou postos de atendimento em situação considerada “deplorável” por funcionários contratados pela ONG em Dourados (MS), onde fica a sede da organização. Havia portas arrombadas e tapumes no lugar de janelas, uma única viatura sem combustível para atender as aldeias, falta de remédios e de equipamentos para exames.
Egresso da ONG americana Novas Tribos do Brasil (MNTB), acusada de proselitismo religioso e contato forçado com indígenas, o pastor e ex-missionário evangélico Ricardo Lopes Dias não foi barrado do governo Bolsonaro. No começo do ano, Lopes Dias se tornou coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Fundação Nacional do Índio (Funai). A nomeação foi criticada e levada à Justiça, mas mantida pelo governo. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), uma das principais ONGs do setor, protestou.
À época, a entidade disse que o País ficaria sujeito a “crimes de genocídio e etnocídio”, que seriam cometidos contra “nossos parentes isolados e de recente contato”, caso se concretizasse a nomeação de alguém ligado ao “proselitismo religioso para o setor da Funai”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.