MOMENTO LÍTERO CULTURAL

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ESPECIAL ESCRITOR JOSÉ MAURO DE VASCONCELOS

Nasceu em Bangu, Rio de Janeiro/RJ -26 de fevereiro de 1920 e morreu em São Paulo/SP -24 de julho de 1984. Completaria hoje 99 anos.

 

Bom dia meu amigo Selmo.

em anexo o primeiro capítulo do livro "O CÃO QUE FALAVA PÃO". Esse livro começou a ser escrito em 04 de outubro de 1983 (dia de São Francisco de Assis), pouco meses antes do seu tio ter problemas de saúde e vir a falecer, por  isso ficou incompleto.

A ideia é que você coloque no seu site esse capítulo no dia 26 de fevereiro, data que José Mauro completaria 99 anos.

a pouco te envio o conto.

Grato,

Evanildo Fernando

Palestrante, pesquisador e curador do Museu José Mauro de Vasconcelos, Rio de Janeiro.

 

Livro inédito, presente para os leitores e admiradores do escritor Zezé do livro Meu Pé de Laranja Lima

O Cão que falava pão.

1

     De fato eu só me lembrava de alguma coisa. Tudo não. Quem disser que se lembra de tudo, está mentindo. O certo é que meus irmãozinhos e eu tínhamos sempre muita fome. A gente quase sempre ficava com as boquinhas ávidas nas tetas de Mamãe. Depois com a barriga redondinha cheia no sono de novo. E era sempre assim. Frio a gente nem sentia porque se aconchegava ao corpo macio de Mamãe. Sentia fome devorava o leite de Mamãe. E quando a gente fazia docinhos amarelos a língua de Mamãe limpava tudo com paciência.

     Mas depois as coisas foram ficando um pouco diferentes. Vinha um barulho que ninguém sabia o que era. E todos nós tremíamos muito.

          - Não é nada, filhinho. É só gente falando lá fora.

     Mesmo assim cada um procurava mais se esconder no abraço de Mamãe.

     Uma mãe, eu não sabia que era uma mãe, mas sentia uma coisa forte a me agarrar e levantar no espaço. Depois me depositaram de novo na nossa cama. E fizeram a mesma coisa com todos os outros meus irmãozinhos.

          - Não tenha medo. É Sebastião, o homem que toma conta da chácara. Ele é bonzinho e muito amigo. Ficou orgulhoso porque vocês são cinco. Porque são lindos e de raça pura.

          - E o barulho que ele fez?

          - Não é barulho. Era a fala dele.

          - Que é que é fala?

          - E o jeito que os homens e que os bichos tem de se entender. Chama-se a isso fala. Como eu estou fazendo com vocês.

          - A gente vai ter fala como o homem?

          - Não. Porque nós somos bichos.

     Nesse ponto eu já sabia que tinha nascido primeiro e que era o mais esperto.

          - Mamãe, conte mais.

2

          - Você é muito perguntador. Mame que é melhor. E durma, porque quando vocês estiverem bem quentinhos eu vou sair para comer a minha comida. Está ficando de noite.

     Eu bocejei com um sono danado.

          - Mamãe a senhora conta mais amanhã.

          - Todos os dias eu vou contando até vocês abrirem os olhos e começarem a descobrir a vida como realmente ela é. Agora, vamos. Durma.

     Dava até para sentir o corpo redondinho e maio dos meus irmãos! E toca um a empurrar o outro para pegar a teta que estivesse mais cheia.

     Mamãe apaziguava.

          - Pra que isso? Tem muito leite. Dá pra todos.

     Logo Sebastião veio e mudou a coberta enxixizada da gente. Ninguém agora temia o contato das suas grandes mãos calejadas. Ele pegava na gente sem machucar.

          - Estão mais lindos, mais lindos!

     Afastava-se eu continuava intrigado.

          - Mamãe por que ele “fala” e eu não entendo. E ele fala e você entende. E você fala e eu entendo.

     Pelo estremecimento do corpo, senti que Mamãe sorria.

          -É assim mesmo, filhinho. Eles são homens. Nós somos bichos.

          -E eu vou entender a fala dele?

          - Quando você abrir os olhos tudo será mais fácil.

3

          - E ele vai entender a minha?

          -Na maioria das vezes, acho que sim.

          - E como pode ser?

          - Sabe meu filho, a vida é muito dura, muito dura e os homens se tornaram muito estranhos. Mas se houver amor todas as criaturas do mundo acabarão por se entender.

     Ficou calada e pensativa um pouco.

          - É tão difícil explicar isso agora para você. Das outras ninhadas que tive, nunca apareceu um tão curioso como você.

          - Que foi que ele falou tanto com você?

          - Disse assim: Mariri, seus filhos são os mais bonitos que você já teve e o patrão vai ficar muito satisfeito quando chegar de viajem.

          -Que é que é Mariri? Que é viajem?

          - Mariri é meu nome, bobinho. Viajem, você não vai entender, mas nada deve ficar sem resposta. O patrão vem aqui todo fim de semana. Essa semana ele não veio. Só vem na outra. 

     Suspirou desanimada.

          - Você não entendeu nada.

          -Uma coisa entendi. Ele chama você de Mariri. Por que?

          - Por que cachorro quando cresce ganha um nome. Você também vai ganhar um. Agora vê se dorme um bocadinho e me deixa em paz.

          - Mamãe e se eu chamar você de Mariri?

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          - Isso não é muito direito, mas não ligo. Acho o meu nome muito lindo e se outras pessoas me tratarem assim por que um filho não o poderia fazer? Afinal é um sinal dos tempos: o tal do modernismo...

     Os outros meus irmãozinhos não gostavam muito de falar. Pelo menos não se dirigiam tanto a mamãe como eu gostava. Preferiam choramingar de fome, reclamar de frio e por outras vezes com o fortalecimento dos dentinhos punham-se a mordiscar os rabinhos e as orelhas.

     Era um berreiro dos diabos quando um deles se afastava das cobertas e caia fora da casinha. Lá ia mamãe pega-lo com a boca sempre com a mesma paciência. Uma, dez, vinte vezes.

          - Logo, logo, vocês vão abrir os olhos, pequerruchos e vão aprender a voltar sozinhos.

          - Vai demorar muito a gente abrir os olhos, Mamãe?

          - Quando menos esperarem acordarão de olhos abertos e então vai ser aquela beleza. Porque a vida é uma coisa muito linda difícil de explicar a quem não pode ver.

          E quando foi na manhã seguinte deu-se o fenômeno. Todo o escuro desapareceu e eu dei um grito cobrindo meu focinho frio no corpo de Mamãe.

          -Estou com medo.

     E todos os meus irmãos encontravam-se dominados pelo mesmo medo e buscando a mesma proteção.

     Mamãe riu.

          - Não é nada, bobinhos. É a luz que vocês tanto esperavam. De noite vocês começaram a abrir os olhos.

5

     Retirei um pouco a cabeça e o meu medo.

          - E porque você não avisou antes?

          - Justamente para deixar a surpresa. E mesmo porque era noite e tudo estava escuro com quando vocês possuíam os olhos fechados. 

     Mexeu com o corpo como se nos acariciasse a todos ao mesmo tempo.

          - Pronto! Vamos começar a ver as coisas e todas as suas realidades.

          - A primeira coisa: olhem para Mamãe!

     E ficamos extasiados com aqueles olhos cor de mel cheios de doçura e bondade a nos observar. Ela era grande e eu nem sabia como descrevê-la.

     Depois olhei para os meus irmãozinhos um por um. Que coisas mais lindas e mais fofinhas. Agora eu sabia com os olhos o que antes já sentira com a minha boca e com as minhas patinhas.

     E logo uma curiosidade se avolumou em todos eles.

          - A gente pode ver tudo? Tudo?

          - Ver e perguntar.

     E aquelas bolinhas redondas andavam desequilibradas e quase sempre rolavam procurando de novo o equilíbrio.

     Mas eu permaneci.

          - Você não vai com os outros?

          - Vou. Mas quero ver você melhor.

          - Porque filhote?

6

          - Porque antes eu sentia você como mãe e agora eu quero ver você como mãe!

          - E agora o que é que você está achando?

     Notei que Mamãe estava visivelmente emocionada.

     Eu fiquei mais tempo analisando sua cabeça, suas orelhas tão longas e tão brilhantes. Meu coração não pode ser conter.

          - Mariri você é linda. E além do mais Mariri você é minha Mãe!

     Ela me puxou para junto do seu corpo e me lambeu suavemente.

          - Você é uma criaturinha estranha. Muito sensível. Até agora nenhum dos meus filhos se importou de falar aquilo que você acabou de me dizer. Não sei se é bom ou se é mau para um cãozinho ter mais coração e mais ternura que os outros. Mas não importa, seja assim, como você quiser.

     Voltei a posição antiga.

          - Quero saber de mais coisas, Mamãe.

          - Diga.

          - Você é assim não é?

          - Assim como?

          - Assim: Você é toda cor de luz, mas na cabeça fica com o tempo que eu não enxergava nada. Também tem pedaços no corpo iguais a cabeça. Por quê?

          - Vamos com calma. Isso que você chama de luz é a cor branca. O escuro que você encontra na minha cabeça e nas minhas orelhas assim também como nas manchas do meu corpo, é

7

o negro. Negro ou preto. Todas as coisas têm cores e isso é que torna a vida uma beleza constante. Agora preste bem atenção. Eu sou branca e preta porque pertencemos a uma raça de cães que tem essas duas cores: Nós somos de raça Pointer. Pointer, viu? Uma senhora raça. Claro que ainda é muito cedo para você avaliar o que estou tentando lhe explicar. Mas você também quando deixar de olhar para mim e se interessar pelo seu corpo vai ver que também possui essas duas cores...

     Olhou-me meio desanimada.

          - Não devia confundi-lo tanto. Eu seria mais simples se explicasse que somos todos de uma raça preta e branca.

          - Mas eu entendi, Mamãe. Não tudo mas dá para saber que a senhora e eu somos brancos e pretos. E da raça...

          - Pointer.

          - E que é que adianta ser dessa raça?

          - Ah! Sim. Se adianta. Um dia você vai ter o orgulho de pertencer a essa raça. Somos da família dos cães Perdigueiros. Cães caçadores e dentre os cães caçadores, somos os mais importantes, porque temos mais faro.

          - Que é que é faro?

          - É cheirar? Você não sente de longe quando Sebastião vem se aproximando do canil?

          - Sinto.

          - Pois isso é o faro...

     Fez uma pausa.

          - Quem vem chegando?

8

          - O Sebastião.

          - Então prepare-se, porque ele vai fazer uma festa danada quando entrar aqui e descobrir vocês de olhos abertos.

     E aconteceu exatamente como mamãe dissera. Sebastião chegou muito vermelho, com aqueles olhos muito azuis e corpos cheirando a cigarro de palha. Foi logo apertando o barrigão contra as pernas para que pudesse se ajoelhar com menos dificuldade.

     Pegou um por um examinou e falou contente.

          - Agora sim, eu posso ter certeza: são duas menininhas e três garotos.

     A cada um de nós, encostava contra o rosto barbado e sorria. Alisava as nossas orelhas nosso rabinho. Depois beijava a nossa cabeça e nos depositava no chão.

          - Chi! Mariri. Cada um mais lindo do que o outro. Você trabalhou bem. Foi a ninhada mais bonita que já teve. Todos fortes e sadios. Das outras vezes sempre vinha um meio mofinozinho. 

     Agradou também a cabeça de Mamãe que sacudiu o rabo toda embevecida.

     Depois Sebastião tirou um de palha do bolso, riscou o fósforo e lançou uma porção de nuvem para cima. Nessa hora seus olhos ficaram miudinhos de congestionamento.

          - Agora ainda não dá, Mariri. Mas logo, loguinho, quando essas ferinhas encorparem mais, eu vou começar a ajudar com leite e papinhas.

                           Fim do primeiro Capítulo

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