O Projeto de Lei 1.904/24, conhecido como 'PL do estuprador', não é mero retrocesso. Trata-se de uma inequívoca opção pela barbárie que, não sem razão, provoca a indignação nacional por contradizer tudo aquilo que foi duramente conquistado pelas mulheres. A sociedade tomou as rédeas da condução de seu destino e forçou o recuo dos deputados, dentro daquilo que orientou o parecer do Conselho Federal da OAB, que classificou o Projeto de “inconstitucional, inconvencional e ilegal”.
Mas não basta, embora represente um avanço, adiar a votação do projeto pelo plenário – indicativo do regime de urgência imposto a toque de caixa. É preciso dar a esse absurdo o destino reservado pela história a iniciativas assemelhadas: o lixo. A OAB ainda recomenda que, caso a proposta legislativa avance, culminando na criação de nova lei, que o tema seja submetido ao Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de ação de controle de constitucionalidade, a fim de reparar possíveis danos aos direitos de meninas e mulheres.
Produzido brilhantemente pelo grupo de mulheres do Conselho Federal da OAD indicado pelo presidente Beto Simonetti, o parecer conduz perfeitamente ao que recomendou o ensaísta, romancista, dramaturgo, poeta, filósofo e deputado espanhol Miguel de Unamuno y Jugo: “Deveríamos nos preocupar mais em ser os pais de nosso futuro, ao invés de nos contentarmos em ser os descendentes perdulários de nosso passado”.
O princípio está registrado, com louvor, entre as cláusulas pétreas na constituição cidadã de 1988 não como crimes contra a vida, mas crimes contra a pessoa, aqueles que mais imediatamente afetam o ente humano. Os bens físicos ou morais que eles ofendem ou ameaçam estão intimamente consubstanciados com a personalidade humana. Tais são: a vida, a intangibilidade corpórea (integridade corporal), a honra, a liberdade e a dignidade do indivíduo.
Nesse sentido, a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) distribuiu nota técnica para assinalar que "As mulheres não morrem de aborto. Elas morrem da insegurança imposta pela criminalidade. E sabemos que as que morrem são as mais vulneráveis, que estão nas condições mais frágeis de acesso aos métodos seguros. O que mata não é o aborto, é a clandestinidade”. Aborto não é apenas uma questão de direito criminal, mas também de saúde pública e, acima de tudo, do respeito à mulher e ao seu direito de escolha.
A priori – diz o parecer da OAB - é imperativo enfatizar que qualquer abordagem sobre a presente temática, aqui no Brasil, não pode perpassar a vastidão histórica da desigualdade social, racial e de gênero, incrustadas no nosso modelo sociopolítico. “Todas as abissais diferenças preponderantes nas tratativas da pauta são flagrantemente oriundas das discriminações seculares, que permaneceram e permanecem insolucionáveis, ferindo, inclusive de morte, as demandas e direitos das mulheres”.
O cuidadoso trabalho, assinado pelas conselheiras federais da Ordem, Silvia Virginia de Souza, Ana Cláudia Pirajá Bandeira, Aurilene Uchôa de Brito, Katianne Wirna Rodrigues Cruz Aragão, Helsínquia Albuquerque dos Santos e Cristiane Damasceno, constitui uma profunda análise técnico-jurídica. O relatório tem foco no direito à saúde, no Direito Penal e no princípio Internacional dos direitos humanos, para exclusiva consideração dos aspectos constitucionais, penais e criminológicos do texto. Dessa forma, o posicionamento do grupo não se confunde com posicionamento contra ou a favor da descriminalização do aborto.
A comissão entende que a mulher não pode ser culpada pelo aborto, nos casos já guarnecidos em lei, pois isso denotaria expressivo retrocesso. A solução para os desafios associados ao aborto não reside na criminalização da mulher. Ao contrário do que propõe “o texto grosseiro e desconexo da realidade expresso no Projeto de Lei”, ela está na obrigação do Estado e demais instituições de protegê-la contra os crimes de estupro e assédio. Atualmente, o Brasil enfrenta uma realidade alarmante: em mais de 80% dos casos as vítimas são crianças indefesas, violentadas e obrigadas a se submeter ao aborto.
Em 2023 foram registrados no Brasil 74.930 estupros, o maior número da história. Desses, 56.820 foram contra meninas com idade até 14 anos, consideradas vulneráveis. Estima-se que, em todo o país, perto de 800 mil mulheres tenham abortado no ano passado, segundo o portal da Câmara dos Deputados. Dessas, 200 mil recorreram ao SUS para tratar as seqüelas de procedimentos malfeitos. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), a situação pode ser ainda mais alarmante: o número de abortos pode ultrapassar um milhão de mulheres. É nesse contexto que a questão deve ser abordada.
*Andrey Cavalcante é ex-presidente e membro honorário vitalício da OAB Rondônia