Fui ao VII Amazônia Motorcycles & IV Acre Rock Festival no fim de semana e saí de lá com uma certeza: quem não foi, perdeu um raro alinhamento entre destino, ousadia e som alto o bastante pra acordar até os desiludidos da cultura.
Não foi “só um evento de motos e rock”. Quem vive no Acre sabe que nada aqui é “só” o que parece. Fazer um evento desse porte em Rio Branco é quase como plantar uma roseira no asfalto, dá flor, sim, mas depois de muita persistência, alguns arranhões e uma fé que beira o milagre.
Trinta e seis anos depois, o Lobão voltou. Na década de 1980, soube que ele veio, depois de um blecaute encerrou o show e foi embora, deixando o Acre inteiro com o refrão entalado na garganta.
Pois bem: o tempo passou, o Brasil mudou, os discos viraram streams, e Lobão, agora com meio século de estrada e outro tanto de temperamento, voltou para o acerto de contas.
E que acerto.
Cantou tudo. Entregou tudo. Bisou. Sorriu (ou quase). Fez o show completo e, por uma noite, os acreanos tiveram o espetáculo que o passado lhes devia.
Mas o verdadeiro show, me perdoem os puristas, não estava apenas no palco. Estava na coragem de quem ousou realizar o evento.
Organizar o VII Amazônia Motorcycles & IV Acre Rock Festival é brincar de ser Prometeu: roubar o fogo dos deuses da indiferença para acender a chama da cultura e ainda agradecer quando eles não te fulminam com um raio.
Ser empresário no Acre é lutar contra a geografia, a logística, a falta de patrocínio e, o mais triste, contra a indiferença de alguns dos próprios pares.
Aqui, o empreendedor cultural não enfrenta apenas a distância dos centros urbanos; enfrenta a distância emocional de quem não acredita que o Acre possa produzir algo grandioso.
E enfrenta, pasmem, até parte dos motociclistas que preferem boicotar o evento em vez de acelerar juntos, como se a solidariedade viesse com limite de cilindrada.
Enquanto isso, o poder público observa de camarote, às vezes aplaude, às vezes ignora com exceções honrosas, que acreditam que economia criativa não é luxo, é estratégia de sobrevivência.
O Acre tem talento, tem arte, tem quem faça. O que falta é engrenagem: parcerias sólidas entre cultura, turismo, gastronomia, música, design e audiovisual.
Um evento como esse poderia movimentar hotéis, bares, restaurantes, oficinas, tatuadores, todo um ecossistema vibrante que ainda engatinha, não por falta de criatividade, mas por falta de visão de quem poderia ajudar a sustentá-lo.
A economia criativa é transformar o que é paixão em produto, o que é arte em trabalho, o que é identidade em renda.
No evento que durou duas noites teve de tudo : o roqueiro nostálgico com a camisa preta do Iron Maiden desbotada, a moça de jaqueta de couro que foi só “pra ver o Lobão de perto”, o senhor de barba branca e olhar emocionado que lembrava o show inacabado dos anos 80, gastronomia, quibe de arroz e tacacá ( hummmm!! ), papo alto astral e os amigos amantes das motocicletas e do rock, que cruzaram o mapa pra estar ali, porque sabem que o ronco de uma moto acompanhado de um bom rock and roll também pode ser um tipo de oração.
No sábado, dia do show do Lobão, o som ecoou no Juventus, pulsante, barulhento, vivo. Surgiu um Acre que não pede licença pra existir apenas apoio pra continuar existindo.
Aos organizadores, fica o brinde mais sincero: parabéns pela ousadia.
Não é pouca coisa tirar do papel um evento que reúne motos, arte, tatuagens, bandas, gente, sonhos e Lobão, tudo junto e funcionando.
É um ato de resistência e de amor.
É o tipo de loucura boa que move o mundo pra frente.
Cassiano Marques e a EME Amazônia junto com o empresário Alex Cruz já estiveram entre os que acreditaram nesse projeto em suas seis edições anteriores. E isso não é coincidência, é coerência. Na sétima edição, Alex Cruz e Isleudo, acreditaram e provaram que há quem ainda insista que o Acre pode e deve ocupar o palco, e não apenas assistir de longe.
No fim, Lobão cantou o que devia, entregou o que prometeu e saiu sob aplausos.
Foi o desfecho de um episódio que começou décadas atrás e que, enfim, encontrou redenção.
O público, extasiado, parecia ter assistido não só a um show, mas a uma espécie de acerto poético com o tempo.
E eu saí de lá com a sensação de que, sim, ainda falta apoio, ainda falta incentivo, ainda falta empatia entre quem faz.
Mas também com a convicção de que o Acre não se mede em quilômetros de distância, se mede em coragem por metro quadrado.
E naquela noite, com Lobão em cena e o ronco das motos ecoando, o Acre foi um país inteiro.
*Socorro Camelo é jornalista.