No filme Incêndios (Incendies, 2010), do diretor Denis Villeneuve, somos apresentados a uma introdução enigmática: um grupo de garotos, claramente maltratados, é preparado por homens armados, como em uma milícia. O semblante dos meninos – captado por uma câmera baixa e com ângulo fechado – revela tristeza ou apatia. Ao fundo, a música “You and Whose Army?”, da banda britânica Radiohead, dá o tom cinzento da sequência, que termina com o enquadramento no rosto de uma criança – que, num breve reflexo, quebra a quarta parede. Antes disso, a imagem revela um sinal tatuado com três pontos no calcanhar do menino.
Com essa cena, eu já poderia encerrar esta análise crítica, pois ela resume bem o que virá a seguir: imagens fortes e consequências profundas.
Por ser um drama familiar ambientado em meio à guerra, evitarei entrar em detalhes da trama para não revelar spoilers. Mas já adianto: este é um dos filmes mais chocantes e avassaladores já feitos, com uma virada narrativa – um plot twist simples, mas de tirar o fôlego.
Depois dessa reviravolta, ao encerrar o filme, você – como espectador – provavelmente tentará formular teorias e interpretações sobre o que foi mostrado. Isso inclui a simbologia gráfica e religiosa envolvida no conflito vivido pela personagem central.
Incêndios é baseado na peça teatral homônima do escritor libanês Wajdi Mouawad, e foi adaptado para o cinema por Denis Villeneuve e Valérie Beaugrand-Champagne – ambos profundamente impactados pela força da história narrada.
Esse é um filme que não apresenta grandes arroubos visuais e estéticos — elementos que viriam a formalizar o estilo do diretor canadense Denis Villeneuve, responsável por obras espetaculares como A Chegada, Blade Runner 2049, Sicário e os dois Duna — seus maiores sucessos de bilheteria. Porém, com um estilo econômico, o diretor faz uso primoroso das locações, especialmente na Jordânia, utilizando a capital Amã como cenário visual crucial para simular Beirute, o ponto zero dos conflitos religiosos da guerra civil que ocorreu entre 1975 e 1990. Em várias dessas sequências, Villeneuve opta por planos abertos que amplificam a dimensão do drama.

No escritório de um tabelionato em uma cidade do Canadá, o notário Jean Lebel (Rémy Girard) apresenta a dois irmãos gêmeos — Jeanne (Mélissa Désormeaux-Poulin) e Simon (Maxim Gaudette) — o testamento deixado por sua mãe, Nawal Marwan (interpretada pela excepcional atriz francesa Lubna Azabal), que faleceu após sofrer um surto psicótico. No conteúdo do testamento, Nawal faz exigências peculiares que deixam os filhos confusos quanto às suas intenções.
Ela pede para ser enterrada nua e “de costas para o mundo”, em um gesto de cunho sacro-pessoal — sem caixão, lápide ou qualquer oração. Justifica isso escrevendo: “uma pessoa que não cumpre suas promessas não merece sequer um funeral”.
Por fim, para que seu último desejo seja cumprido, Nawal atribui a Jeanne e Simon uma missão individual. Jeanne deve entregar uma carta ao pai — cuja identidade ninguém conhece, já que os irmãos acreditavam que ele havia morrido na guerra civil, na cidade fictícia de Daresh, no Oriente Médio. Já Simon deve entregar uma carta ao irmão mais velho, cuja existência ele desconhecia. Somente após essas duas tarefas serem realizadas, os filhos poderiam construir uma lápide para a mãe.

Com essa premissa inicial, o filme segue duas histórias lineares que se desenrolam no tempo presente. Primeiro, vemos Jeanne viajando ao Líbano, até a cidade onde sua mãe nasceu e peregrinou — a aldeia de Der Om, em Fouad — para descobrir a identidade de seu pai. Em seguida, Simon se junta a ela nessa jornada. Paralelamente, no passado, por meio de flashbacks, acompanhamos a trajetória de Nawal, a mãe — oriunda de uma família cristã — desde o momento em que foi flagrada pelos irmãos tentando fugir com o namorado, um jovem muçulmano, em uma vila libanesa, até seus terríveis dias em uma prisão para mulheres.
Nesse entrelaçamento narrativo do passado, logo no início descobrimos que, após ser salva pela avó — enquanto o namorado foi morto — Nawal revelou estar grávida. Ainda adolescente, ela não pôde ficar com a criança devido aos costumes rígidos da família cristã, que não aceitava a união com muçulmanos. Assim, logo após o parto, sua avó marcou o bebê com três pontos no calcanhar antes de entregá-lo à adoção.
Mais adiante, há um salto temporal na vida de Nawal: ela se muda para a cidade de Daresh, onde encontra abrigo e oportunidade de estudar na universidade local. Lá, passa a trabalhar no jornal de um tio. Quando a guerra civil entre muçulmanos e cristãos eclode, ela se junta aos jovens ativistas opositores aos chamados “nacionalistas” — membros do partido cristão de direita, notoriamente mais radicais.
Com a guerra em andamento, Nawal decide procurar o filho. Dirige-se ao orfanato onde acredita que ele possa ter sido criado, mas ao chegar lá descobre que a criança foi transferida para outro lugar: o Campo de Deressa, onde são levadas crianças sobreviventes aos massacres e bombardeios nas vilas.
No presente, a filha Jeanne, uma vez na terra onde a mãe viveu, começa a descobrir fatos que jamais poderia imaginar — como o fato de Nawal ser odiada por um grupo de mulheres em uma comunidade local, por causa de um segredo apenas insinuado ao longo da trama.
À medida que acompanhamos as situações pelas quais Nawal passou em sua busca desesperada pelo filho perdido, o filme também nos revela, com crueza, a face mortal e trágica da guerra civil religiosa. Isso fica especialmente claro em cenas como a do ônibus — uma das mais fortes do filme — ou quando compreendemos o que levou Nawal a abandonar os preceitos católicos e tornar-se simpatizante da causa rebelde do lado muçulmano. Fica evidente sua perseverança em buscar a liberdade a qualquer custo, mesmo que isso significasse pagar um preço altíssimo por suas escolhas.
O diretor extrai do texto original um forte libelo antibelicista, denunciando a futilidade da guerra e as consequências trágicas para a população civil — sobretudo para mulheres como Nawal. Jeanne vai descobrindo, da forma mais dolorosa possível, que sua mãe enfrentou situações-limite, numa jornada de sofrimento que a filha desconhecia completamente. O choque é tão profundo que a coloca em desespero, por nunca ter tido a chance de conversar com a mãe sobre tudo isso em vida.
Quando Jeanne finalmente chega até uma testemunha que relata os momentos de terror vividos por Nawal em uma prisão feminina — onde ficou conhecida como “a mulher que canta” nos corredores violentos do presídio — a verdade se impõe. As revelações de tortura e estupros vividos por Nawal abalam profundamente a filha, que, acuada diante de tanta dor, decide chamar o irmão Simon para participar da busca no Líbano.
Agora juntos, os irmãos contam com a ajuda do notário Jean, que os acompanha na investigação sobre o paradeiro do pai e do irmão desconhecido — uma busca que caminha rumo a uma das descobertas mais impactantes da história do cinema contemporâneo.
O que vem a seguir são viagens e corridas por vilarejos, ruas empoeiradas, relatos de libaneses mais velhos sobre situações em que cruzaram com a figura enigmática da “mulher que canta”.
O filme constrói, com maestria, uma crescente expectativa na investigação e na reconstrução do passado sombrio daquela mulher que, de certa forma, ajudou a escrever sua história pessoal em meio a uma guerra marcada por traumas profundos e vidas dilaceradas.
Todas as ações que moveram a vida de Nawal — e, agora, a investigação conduzida pelos irmãos gêmeos — convergem para um momento inevitável: a revelação da verdade mais bruta, mais inesperada, e talvez mais dolorosa de todas.
O final de Incêndios é um verdadeiro soco no estômago.
O filme está disponível no serviço de streaming Reserva Imovision, via Prime Video.