O filme francês “Irreversível” (Irreversible/2002), do cineasta argentino Gabriel Noé, teve uma das estreias mais polêmicas no Festival de Cannes em 2002. Para ter uma ideia, na noite de exibição, com a presença do diretor do filme e elenco, cerca de 250 pessoas abandonaram a sala de projeção porque não suportaram a violência mostrada, principalmente uma cena de estupro de nove minutos sem cortes, feito em um único plano sequência dentro de um corredor de acesso do metrô de Paris.
Considerado um filme de arte, mas também de drama psicológico perturbador, o que o diretor e roteirista Gabriel Noé realizou foi uma obra controversa, com um foco diferenciado na narrativa, pois é contado de trás para frente, a história de uma vingança, onde toda a ação ocorre em um espaço de tempo de uma noite. Ou seja, as motivações dos personagens e consequências começam pelo fim e através de cortes estratégicos de cenas vai regredindo ponto a ponto em questão de horas.
Perdão, essa análise crítica do filme vai ter alguns spoilers para justificar toda a polêmica em torno do filme e os seus pontos controversos mais brutais.
No Youtube tem vídeos com cortes do filme que destacam as cenas violentas, eu recomendo que se assista o filme na íntegra para entender a obra, pois fora de contexto a ação parece gratuita, com a única função de ser sensacionalista.
A primeira sequência mostra dois homens conversando em um quarto que fica em cima de um imóvel, vizinho a uma boate gay. Onde eles conversam e fumam. Logo a câmera de Gabriel inicia uma viagem quase alucinógena em que fica movimentando entre os ambientes como um pêndulo, até dar um corte e mostrar uma ambulância em frente ao “inferninho”.
Outro corte e vamos ver dois amigos desesperados adentrando a boate, chamada de “Rectum”, Marcus (Vincent Cassel) e Pierre (Albert Dupontel), que ainda estão alucinados e estavam andando pelos pontos obscuros da marginália de Paris à procura do homem que teria estuprado e espancado Alex (Monica Bellucci), a atual namorada de Marcus e ex-namorada de Pierre.
Esse enlace de parceria entre Marcus e Pierre tem uma consequência dentro da boate e é uma das cenas mais longas e agonizantes já realizadas para o cinema. Pois o diretor fez uso de um recurso entre imagens e som único.
Gabriel Noé utilizou um espectro no som nessa sequência chamado de “infrasom”, que são os sons abaixo de 20 hertz - extramente graves - que tem a intenção de mexer com a estrutura molecular sensorial do nosso corpo pela audição, causando um incômodo perceptível.
Nesse trecho é possível perceber uma onda sonora que abaixa e aumenta a sua frequência de acordo com a movimentação da câmera - em cortes imperceptíveis e longos travelings tortuosos e desconexos - que vai mostrando os ambientes dentro da boate com casais gays homens em cenas de sadomasoquismo ou cópula -, porém com o aúdio sempre abaixo de 20 hertz, o que eleva o tom da confusão mental do personagem de Marcus, louco por vingança, em sua busca pelo responsável do estupro da sua companheira.
Toda essa sequência tem a iluminação, cores e matizes visual na cor vermelha, com a fotografia estourada no aspecto rubro, tornando as imagens tensas, urgentes e vibrantes. Como sangue ou um sinal de alerta constante. Os takes em plano sequência são tortuantes e nauseantes.
A imersão inicial do espectador com o impacto é imediata, pois é muito violenta e chocante, nós dá um prumo da proposta diferenciada que “Irreversível” promove em sua estrutura narrativa. Que é causar incômodo mesmo, destruir o nosso emocional.
Sobre a famosa cena do estrupo da personagem Alex (papel ingrato para a atriz, belíssima, Monica Bellucci), difícil assistir na íntegra, pois toda a preparação na trama e até o ato, existe uma ansiedade para quem assiste, pois você, espectador, sabe que vai ter essa violência.
Essa sequência é filmada em plano único, fixo, com nove minutos de duração, tem uma mise-en-scène gráfica absurda; um corredor estreito em tons vermelho, com uma luminosidade atmosférica repressora visualmente, mas intensa pela violência. É mostrado o membro ereto do agressor (que foi adicionado em efeito pela pós produção) e finaliza com uma surra descabida e covarde.
Nos bastidores dessa cena em particular, a filmagem foi feita em dois dias, entre ensaios e estudo de melhor posicionamento da câmera, até mesmo a coreografia do ato. O diretor Gabriel propôs a atriz Monica se ela toparia gravar de forma explícita, o que foi refutado por ela, pois não teria apelo artístico e sim pornográfico. O ator Vincent Cassel, então casado com a atriz, quando leu o roteiro com a cena, em primeiro momento rejeitou, achando forte e intensa demais. Porém Bellucci o convenceu sobre a importância e que isso daria razão para o filme.
Após essa sequência o filme volta mais um pouco para uma festa onde estavam todos os personagens, Marcus, Alex e Pierre, e onde ocorre uma conversa mais ríspida e cenas de ciúme, que motivou a personagem a sair e querer voltar pra casa indo para o metro de Paris.
O filme estreou nos cinemas brasileiros quase um ano depois, em setembro de 2003, e nunca foi exibido na TV aberta.
Atualmente “Irreversível” está fora de exibição dos streamings, e durante algum tempo ficou disponível no Telecine, da Globoplay.
Caso se interesse em assistir na íntegra é bom ir por meio alternativos, de preferência na língua francesa.
Ainda um filme muito pertubador, e no final tem uma pequena revelação da personagem Alex que deixa tudo ainda mais chocante.
Um filme para poucos.