Quando eu estava trabalhando como repórter e editor de cultura no jornal Alto Madeira, nos anos 90, circa 1998, eu tinha contato com diversas bandas de rock daquele período em Porto Velho, assim como músicos. Como editor eu abria espaço para os artistas locais divulgando shows, fazendo entrevistas e dando espaço para divulgar seus trabalhos artísticos.
Em um show que eu fui num evento com apresentação de bandas punks alternativas, entre elas Vítimas do Sistema e DHC (Deliquentes da Humanidade em Caos). no meio da pogada na “roda de pogo” alguém mencionou que essa festa estava igual ao que acontecia em uma oficina mecânica que ficava no centro da cidade.
Num dos intervalos das apresentações, curioso perguntei a um dos integrantes de uma das bandas se tinha alguma oficina mecânica que abria espaço para shows.
“Você ainda não foi na Oficina do Rock?”
“Não, nem sabia que tinha.”
“Vai lá, você precisa conhecer cara. É muito louco!”
Então com essa informação descobri que uma das figuras mais conhecidas da cidade, Ney Miranda, também muito conhecido pela a alcunha de “Heavy Ney”, tinha transformado a sua oficina mecânica, que ficava localizada na Rua Campos Sales, entre a Rua Afonso Pena e Avenida Sete de Setembro, bem próximo a antiga e extinta Lobrás, que hoje funciona a Lojas Marisa, havia aberto espaço aos sábados a noite para as bandas locais se apresentarem.
O local não tinha capacidade para comportar um show de jovens roqueiros, com os hormônios em polvorosa, no gritante da sua fúria primal em meio ao caos sonoro de bandas punk e de metal. Não era possível.
Era sim. A oficina do Heavy Ney tinha uma entrada por um grande portão e depois uma pequena subida de terra batida onde aos fundos tinha um barracão de madeira - na verdade um galpão - onde ficavam as ferramentas, carcaças de veículos, peças de carros e um cheiro intenso de óleo diesel.
Quando fui em um sábado, por volta as 11 horas da noite, o som de motoserra com bateria era possível ouvir a duas quadras. Dentro do galpão não tinha palco, as bandas tocavam no piso mesmo com o público bem próximo, dançando e se arregaçando em pogo e na roda de mosh (aquela dança que parecia uma pancadaria).
Numa das paredes estava uma das frases mais impactantes de uma canção da banda DHC pintada em uma faixa, já anunciando uma das diretrizes da nova ordem musical da poesia urbana da contra cultura porto-velhense daquela galera jovem em um espaço tão democrático da música dita alternativa:
“Enquanto homens lutarem por linhas e fronteiras imaginárias seremos expectadores da desgraça e destruição. Provocados por uma guerra sem razão”.
Foi um choque ver aquele espaço, os shows e toda movimentação, sem cobrar ingresso, a galera levando a sua cerveja. O equipamento de som era uma tranqueira com várias caixas ligadas a uma mesa de som de quatro canais e com a potência muito alta das bandas que se apresentavam, era impossível distinguir os instrumentos - guitarras, baixo e bateria. Era uma maçaroca sonora que mais parecia duas serras elétricas ligadas com uma batida de bateria, muita microfonia e tinha músico tentando ainda buscar afinação do seu instrumento.
Sem retorno sonoro para os músicos, tocavam na força do ódio e rebeldia, no instinto mesmo - às vezes tinham caixas que queimavam em meio a uma apresentação. A Oficina do Rock, do Heavy Ney, era um must, um berço esplêndido da música de jovens marginalizados, sem espaço decente para tocar ou se apresentar.
E era “O ESPAÇO”.
Um amigo meu naquele período, o fotográfo Paulo Mattos, pirou quando foi no local e disse que em suas andanças como profissional, que já havia circulado em vários rincões brasileiros, aquele galpão era uma potência da liberdade juvenil, nem nas cenas paulista e carioca ele tinha visto algo tão agressivo, rebelde e funcional.
Escrevi uma reportagem apaixonada sobre a Oficina do Rock. Sujo, cheirando a graxa e óleo velho, gente se batendo no meio do furdunço ao som de punk rock e metal. A poeira levantava nas batidas dos pés no chão batido e a sonzeira parecia fazer as ripas no entorno do galpão tremer.
No meio daquele povo era possível encontrar o Heavy Ney, sem camisa, suado, segurando uma lata de cerveja em uma das mãos, cabelos compridos sacudindo nos ombros enquanto curtia o som que era martelado nas caixas.
Aquele cara que circulava pela cidade com um velho Maverick preto, de oito cilindros, que roncava mais que motor de competições de Hotrod, se tornava ali uma lenda, um aríete do rock independente local com o seu espaço tão reservado.
Anos depois, a sua oficina no centro da cidade já estava fechada, o local onde ela ficava tinha virado outra coisa, um ponto comercial. E vi a triste notícia de que ele havia sido agredido a pauladas em um bar, quase morreu. Foi bem chocante pra mim, pois nunca tive acesso a Heavy Ney, de conversar ou entrevistar, algo que eu lamentava, mas eu tinha uma admiração pela figura rebelde que ele transpirava, sempre com cabelos compridos, camisa regata, de jeans e botas, sujo de graxa.
Lamentei
Depois veio a mais triste notícia.
No dia 30 de abril de 2016, um sábado a noite, Heavy Ney foi morto com vários tiros na cabeça, enquanto estava em um bar, conversando com um historiador e amigo, que iria escrever a sua biografia.
Essa semana o meu amigo, o repórter Paulo Motta, me enviou um vídeo antigo, um minidocumentário que traz um depoimento muito legal do Heavy Ney. É um vídeo produzido em 2004 que serviu como trabalho para avaliação na disciplina de Antropologia, para o curso de Geografia da Unir, assinado por Giovanni Bruno Souto Marini e Henrique Bernini. Que está disponível no Youtube.
O vídeo tem um pequeno registros de show na Oficina do Rock, e é um feito muito raro para o audiovisual local, como um documento da contra cultural de Porto Velho.
Heavy Ney é uma das figuras lendárias que deixou um legado que poucos reconhecerão, mas quem viveu sabe como foi.