Senti-me completamente nu, como no dia em que nasci. Esse foi o sentimento, inevitável, que me tomou ao saber da decisão do Supremo, que retirou a obrigatoriedade do diploma de jornalista. Em vinte anos de profissão, jamais tive que mostrar meu diploma da UFPR para provar que sou jornalista. Mesmo assim, é humilhante. Como bem lembrou a diretoria da Fenaj, essa decisão “humilha a memória de gerações de jornalistas”.
Gilmar, mentes! Não sabes o que é ser jornalista. Jamais saberás. Podes até exercer a profissão, agora que igualastes a todos: a faxineira, o analfabeto, os juízes do Supremo. Mesmo assim, jamais saberás os caminhos dessa profissão, dessa missão. Porque todo jornalista sabe que o diploma não é o fim, é o início. Não é a pedra no caminho, antes é o apoio para a longa caminhada.
A faculdade não ensina a ser jornalista, mas ali se aprende a respeitar a profissão e, principalmente, os bons profissionais. Nem todo grande jornalista saiu da faculdade. Mas, aqueles que têm a humildade de reconhecer os ensinamentos contidos numa universidade, já estão um passo à frente.
Num país onde a educação enfrenta enormes desafios, uma decisão como essa, a do Supremo, é um tiro no pé. Isso não tem nada a ver, por exemplo, com os blogueiros que democratizaram a informação na internet. Não é essa a questão, nunca foi. Diploma não limita a liberdade de expressão. Outro dia, o dono de um blog esportivo se desculpou por um erro de português, dizendo simplesmente: “não sou jornalista”. Tá desculpado! Até jornalistas formados erram. Até o Supremo erra. Deixem os blogueiros trabalhar, que sejam felizes!
A questão crucial é outra. Envolve o monopólio da mídia, algo que a grande maioria da população pouco sabe a respeito. O cidadão comum não tem tempo para questionar, por exemplo, o motivo pelo qual meia-dúzia de famílias lotearam para si os grandes jornais, as grandes revistas, as redes nacionais de rádio e as grandes emissoras de televisão. Desconfio que não foi para o bem da imensa maioria da população, embora eles insistam em dizer o contrário.
Questionar é tarefa para jornalistas. Sempre foi e continuará sendo. Cozinheiros continuarão aparecendo na TV para comentar sobre culinária. Nunca foi proibido. Médicos, dentistas e advogados continuarão escrevendo artigos de opinião em grandes jornais e revistas do país, como sempre fizeram. Nada disso era proibido, nem agora será.
Mas, então, para que se “derrubar” o diploma? A quem interessava essa decisão do Supremo? Quando o presidente da ABI, Maurício Azêdo, afirma em nota que a decisão “expõe os jornalistas a riscos e fragilidades”, não está exagerando. O alvo dessa decisão do Supremo somos nós, jornalistas, e essa nossa insistência em questionar, em apurar, em investigar os fatos e os motivos.
Viramos alvo, ficamos nus, estamos expostos. Imagino agora tudo aquilo que nossos bravos colegas do passado enfrentaram durante os anos da repressão, nos fatos ignorados pelas lembranças de minha infância. Passo a passo, primeiro a censura, depois a tortura, as mortes anônimas, o exílio de muitos, até que o assassinato do jornalista Vladimir Herzog fizesse transbordar todo o sentimento de revolta nacional e, a partir dali, se iniciasse a retomada gradual para a abertura política.
A ditadura se foi, mas hoje rasgaram o diploma de milhares de colegas jornalistas, numa canetada só! Ah, isso sim cheira a chumbo! É fechar caminhos para a democracia e para a liberdade de expressão. Hoje, os verdadeiros donos do “quarto poder” destróem equipamentos das rádios comunitárias e jogam diplomas no lixo. E amanhã, qual será a decisão?
Penso em quem será capaz de segurar essa sanha pelo monopólio da informação e suas benesses econômicas e políticas. Brincando de “grande irmão” da democracia, derrubaram o diploma com voracidade e rapidez. Um direito conquistado há 40 anos, reivindicado há 90 anos, foi sumariamente atirado no limbo.
A vontade dos 80 mil jornalistas brasileiros e da maioria da população foi ignorada. Não tivemos a oportunidade de decidir por nós mesmos, fosse qual fosse essa decisão, contra ou a favor do diploma. Mais uma vez, venceu a meia-dúzia de sempre, com o apoio de mais sete ou oito. Fez-se a vontade suprema.
* Sandro Benjamim André, jornalista.