ACERVO: Museu em Rondônia mantém 300 mil peças arqueológicas; a mais antiga tem 7 mil anos

Pesquisa mostra que a língua Tupi pode ter surgido entre ancestrais rondonienses

ACERVO: Museu em Rondônia mantém 300 mil peças arqueológicas; a mais antiga tem 7 mil anos

Foto: Divulgação

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Rondônia é rica em sítios arqueológicos. São dezenas. As pesquisas no setor têm demonstrado, inclusive, algo ainda pouco conhecido no mundo: o tupi — que já foi a língua mais falada no país — teria surgido no território onde é hoje o Estado.

 

Com cerca de 300 mil peças, o Museu Regional de Arqueologia, em Presidente Médici (Região Centro-Leste), é administrado com muita competência por uma especialista em arqueologia da Amazônia, Maria Coimbra Oliveira, autora do livro “Arte rupestre em Rondônia”, uma verdadeira referência bibliográfica.

 

Nesta entrevista, a pesquisadora — que se converteu na “dama da arqueologia rondoniense” por sua dedicação amplamente reconhecida — conta muito da pré-história e da formação do lugar que ela define como “um sítio arqueológico a céu aberto”.

 

Maria Coimbra é especialista em arqueologia da Amazônia

 

JÚLIO OLIVAR — Quando a senhora começou seu trabalho na arqueologia?


MARIA COIMBRA — Há 22 anos.

 

JÚLIO OLIVAR — Qual sua formação acadêmica?


MARIA COIMBRA — Sou historiadora, com mestrado em História e Cultura, arqueóloga especialista em arqueologia da Amazônia, e atualmente mestranda em Estudos Literários, na linha de “Literatura, Memória e Identidade Pan-amazônicas”.

 

JÚLIO OLIVAR — A senhora tem um livro publicado, não é? O que ele revela?


MARIA COIMBRA — Sim, tenho, publicado em 2013. “Arte rupestre em Rondônia” é a primeira obra de referência da e para a arqueologia regional do Centro-Leste de Rondônia. O livro deve sua publicação ao Edital Sab 2011, com patrocínio da Petrobrás e Ministério da Cultura. Aborda os registros rupestres dessa região de Rondônia, enfocando seus aspectos formais e localização, sendo realizado um inventário dos sítios e gravuras. O livro consegue dar um panorama geral dos vestígios arqueológicos tanto para pesquisadores quanto para leigos interessados no assunto.

Além do livro, tenho dois artigos publicado em parceria com outros pesquisadores (“Pedras que guardam segredos” -http://www.periodicos.unir.br/index.php/veredasamazonicas/article/viewArticle/283  e “Formação Pedra Redonda e ocorrências arqueológicas associadas” -http://www.rupestreweb.info/pedraredonda.html).

 

JÚLIO OLIVAR — O Museu de Arqueologia de Médici surgiu quando e em que contexto?


MARIA COIMBRA — O Centro de Pesquisa e Museu Regional de Arqueologia de Rondônia é uma instituição de acervo, pesquisa, preservação e valorização do patrimônio arqueológico. Criado pela Lei Municipal nº 1381 de 2007 e inaugurado em 11 de junho de 2008, é mantido pela Prefeitura de Presidente Médici e está vinculado à Secretaria Municipal de Educação e Cultura.

 

 

A demanda para a criação do museu ocorreu a partir de uma pesquisa realizada no centro-leste rondoniense, que depois acabou se estendendo para todo o centro-sul do estado de  Rondônia, por mim e pelo professor José da Silva Garcia (licenciado em História e especialista em história contemporânea e arqueologia da Amazônia). A pesquisa, originada na graduação, estendida à pós-graduação dos mesmos em História contemporânea, os levou a mapear as áreas de ocorrência de sítios arqueológicos com arte rupestre [foco de suas pesquisas] inicialmente nos municípios de Presidente Médici, Ji-Paraná e Ministro Andreazza e, posteriormente, estendida a toda a região central do Estado, a partir de levantamento e cadastro apresentado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), além de mais de uma centena de sítios arqueológicos cerâmicos, líticos e de feições de polimento.

 

A importância dessa pesquisa foi tanto maior por dois motivos: inicialmente, paralelo ao levantamento e mapeamento dos sítios arqueológicos, foi iniciado pelos dois professores atividades de educação patrimonial junto à comunidade estudantil do município, tanto nas escolas municipais quanto estaduais, visto serem professores da rede pública estadual, e por um período a disposição do município (entre 1991 e 2004) e posteriormente em escolas da rede estadual; segundo, pela localização e mapeamento de coleções arqueológicas em mãos de particulares, a saber, proprietários rurais da região centro-leste do estado.
O Museu da Arqueologia foi criado com a tutela do Iphan, com a missão de abrigar o acervo arqueológico localizado na região, promover a curadoria desses objetos que se elevam à casa dos milhares, promover atividades de educação patrimonial junto às escolas, tanto públicas quanto privadas, em todos os níveis, regularizar, cadastrar e documentar os acervos arqueológicos ainda em mãos de particulares, bem como os sítios arqueológicos ainda abundantes e sem documentação na região, a partir da demanda gerada pela própria população e, ainda, dar suporte às pesquisas diretas ou indiretas.


 
 JÚLIO OLIVAR — O acervo é composto de quantas peças e qual é a mais remota e valiosa do ponto de visto iconográfico?

 

MARIA COIMBRA — O museu consta de aproximadamente 300 mil peças, entre objetos e fragmentos cerâmicos, líticos, ósseos e madeira. A peça com a antiguidade maior é uma escultura de um rosto, em cerâmica, proveniente de um sítio arqueológico datado em pouco de 7 mil anos antes do presente. Mas, constam de outras peças significativas, como três esculturas fragmentadas, sendo uma delas bastante detalhista e oca, também há duas urnas funerárias com acompanhamento funerário, além de muitos utensílios cerâmicos inteiros e milhares de lâminas de machado com perfis bastante singulares.


 
JÚLIO OLIVAR — Além de diretora do museu, seu trabalho em campo contribuiu com a catalogação de muitos sítios arqueológicos na região. Quantos são e qual o mais emblemático?

 

MARIA COIMBRA — Em parceria com o professor José Garcia e posteriormente só, catalogamos perto de 200 sítios arqueológicos no centro-sul de Rondônia. Sem dúvida, os sítios mais emblemáticos são os de cerimoniais, de registros rupestres, pois guardam ainda uma história simbólica a ser desvendada.

 

 

JÚLIO OLIVAR — As inscrições rupestres eram expressões artísticas ou algum tipo de comunicação prática e objetiva, ou as duas coisas?

 

MARIA COIMBRA — Na atualidade acredita-se que as duas coisas. É um tipo de comunicação, logo um tipo de escrita pictográfica, embora ainda naão tenha sido possível interpretá-la, mas ao mesmo tempo também são painéis carregados de simbolismos da, digamos, religião primária dessas sociedades que habitavam o entorno desses sítios rupestres.

 

JÚLIO OLIVAR — A arte é inerente ao ser humano, desde sempre. Consideremos, por exemplo, que nem todas as cerâmicas com centenas de anos têm caráter utilitário. Qual o objeto mais interessante e que a senhora considera obra de arte entre os achados?

 

MARIA COIMBRA — O simbolismo impresso em alguns objetos é gritante, como por exemplo, a de uma estatueta encontrada em um sítio do município de Alta Floresta, ou uma urna funerária de um sítio de Presidente Médici,  com um pacote incluindo apenas os ossos do crâneo e das pernas, um exemplo perfeito de enterramentos secundários parciais praticado pelos grupos tupi-guarani.

 

JÚLIO OLIVAR — Há estudos que asseguram que o tronco tupi teria nascido no território que hoje compreende o estado de Rondônia. O que se pode afirmar neste sentido e qual a relevância deste conhecimento?

 

MARIA COIMBRA — Aryon Dall’Igna Rodrigues, linguista brasileiro, sugere Rondônia como a terra natal do tronco linguístico Tupi. A área de concentração do maior número de famílias linguísticas filiadas a um tronco linguístico tem mais chance de ser a região de origem. Tal teoria que busca determinar a região de origem e dispersão das famílias do tronco Tupi teve suas origens nos estudos do arqueólogo norte-americano Donald Lathrap (1927/1990), que elaborou a hipótes de que “o aumento contínuo da pressão demográfica no centro da Amazônia resultou em permanente e centrífugo êxodo populacional em várias direções, atingindo áreas distantes e dispersando artefatos e práticas agrícolas criados no interior da Amazônia”.

 

José Proenza Brochado, apoiando-se nesta hipótese, desenvolveu  a “continuidade entre o contexto arqueológico e cultural Tupi sugerido por Lathrap […]consolidando novas rotas de expansão”. Aryon Rodrigues, também adepto dessa teoria, se diferencia de Lathrap e Brochado apenas quanto o centro de origem Tupi: para ele a região do atual Estado de Rondônia, com bases no princípio da linguística histórica tem mais chances de ser a região de origem; para Lathrap e Brochado a região de origem seria a foz do rio Madeira, considerando condições mais favoráveis para o desenvolvimento tecnológico e as descobertas botânicas, além dos rios que seriam um caminho natural para a difusão.


 
Tal teoria coloca Rondônia no centro das pesquisas e discussões acadêmicas sobre tais grupos originários, visto serem ainda muitas as famílias linguísticas desse tronco que ainda persistem em Rondônia, além de grupos isolados, com uma representatividade histórica atual com um leque de possibilidades para a antropologia e arqueologia entenderem e conhecerem essas sociedades originárias milenares.


 
JÚLIO OLIVAR — Se o tupi, que já foi a língua mais falada no Brasil — até o impedimento imposto por Marquês de Pombal, em 1758, exigindo o português como única língua — tem berço em Rondônia, pode-se dizer que os povos originais daqui são a raiz do país tal qual foi conhecido pelos invasores portugueses em 1500?

 

MARIA COIMBRA — Sim, e ainda mais que a maioria dos grupos com quem os portugueses se relacionaram no litoral, à época da conquista, vem desse tronco linguístico. Tanto é assim, que a língua geral elaborada pelos padres jesuítas, era uma mistura  de tupi  com o português, e que conhecemos também pelo nome de Nheengatu, o que possibilitou a colonização e a conquista do atual território brasileiro pelos portugueses, e a marcha para o oeste dos mesmos, a partir das Entradas e Bandeiras, para além do Tratado de Tordesilhas, a partir da União Ibérica.

 

JÚLIO OLIVAR — As informações acerca da vida pré-colombiana nesta região apontam a existência de muitas sociedades. É possível identificar algum local específico de maiores concentrações de ameríndios em Rondônia naquela fase?

 

MARIA COIMBRA — Sim. Rondônia é um grande sítio arqueológico a céu aberto. Porém, a região central do Estado, principalmente a centro-leste, composta pelos atuais municípios de Ministro Andreazza, Presidente Médici e Ji-Paraná, são as mais densas em vestígios arqueológicos. Mas Rondônia é uma particularidade na arqueologia, pois aqui encontramos todos os tipos de sítios arqueológicos, inclusive sambaquis, que no nosso caso são de rio, e estão localizados no rio Guaporé, sendo alvos de estudos da USP em parceria  com a Universidade de Rondônia. Também há um sítio arqueológico bem antigo no Rio Madeira, próximo a Porto Velho, onde foi descoberta a domesticação da mandioca há mais de 8 mil anos.

 

Mais recentemente, entre 2014 e 2016, houve também uma parceria da USP com o Centro de Pesquisas e Museu Regional de Arqueologia de Rondônia, em que foi desenvolvida uma tese de doutorado em arqueologia no sítio Rainha da Paz, distante cerca de 12 km da sede do município. Apesar de não termos uma datação definida de sua antiguidade, o estudo revelou que havia uma densidade de aldeamentos na região, e o desenvolvimento de culturas como a da abóbora, do milho e a do arroz, entre outras.

 

JÚLIO OLIVAR — Trabalhos desenvolvidos na região do Vale do Rio Madeira, sob a coordenação do falecido [em 2018] arqueólogo Eurico Theofilo Miller, revelam a presença humana há mais de 13,8 mil anos em Rondônia.

 

MARIA COIMBRA — Os primeiros trabalhos arqueológicos em Rondônia tiveram como arqueólogo encarregado Eurico Miller. Ele realizou, na década de 1980, o levantamento e salvamento arqueológico da área de abrangência da Usina Hidrelétrica de Samuel, no Rio Jamari, e sua pesquisa de mestrado no Alto-Médio Guaporé, abrangendo os estados do Mato Grosso e Rondônia. Ainda, nesta década, fez a prospecção arqueológica na área de influência da BR 429, que liga a BR 364, na altura do município de Presidente Médici a Costa Marques, fronteira ocidental do Estado com a Bolívia, às margens do rio Guaporé. Porém, à época de suas pesquisas, ainda não havia uma tecnologia desenvolvida que pudesse trazer à tona muitas informações. Muitos desses sítios por ele descoberto têm sido revisitados por arqueólogos, mais recentemente, corroborando com novas informações e comprovando as antigas.

 

JÚLIO OLIVAR —Rondônia está em que patamar na comparação com outros estados na questão arqueológica? Qual a importância conjuntural do que existe aqui para o país?

 

MARIA COIMBRA — Rondônia está em um patamar de igualdade, e em alguns aspectos, superior a muitos estados brasileiros, principalmente no que diz respeito ao desenvolvimento da arqueologia empresarial. Rondônia tem atraído muitos investimentos primários, levando a uma avalanche de levantamentos e prospecções arqueológicos pontuais, desenvolvendo centenas de relatórios de referência para futuros estudos institucionais e acadêmicos na área da arqueologia.

 

 
JÚLIO OLIVAR — Os governos do Estado e da União valorizam a riqueza arqueológica regional e adotam políticas públicas que valorizem o setor nos segmentos da educação, da antropologia, da cultura, inclusive, para serem convertidas em indução turística?

 

MARIA COIMBRA — Sim, há muitas políticas públicas e esforço dos governos do Estado e da União. Porém, um grande entrave nesse sentido, é a falta de vontade política e a resistência que se encontra nos municípios.


 
JÚLIO OLIVAR — Há indícios sobre a possibilidade da presença de dinossauros na região? Há algum estudo sobre o assunto?

 

MARIA COIMBRA — Até o momento, nada foi encontrado a respeito em Rondônia. Mas não é impossível, visto que no estado vizinho do Mato Grosso já foram encontrados fósseis de dinossauros [em Chapada dos Guimarães, a 64 km de Cuiabá, houve dinossauros entre 84 e 65 milhões de anos, segundo pesquisas divulgadas]. Em Rondônia, há amostras de fósseis de megatério [preguiça gigante que habitaram Rondônia há 10 mil anos] no Museu Municipal de Guajará-Mirim (fronteira do Brasil com a Bolívia) e no Museu da Memória Rondoniense, em Porto Velho, capital do Estado. 

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