O delegado que morreu no pé da Serra dos Parecis - Por Simon O. dos Santos

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Meus estimados leitores da Pérola do Mamoré, o delegado Feitosa era um homem esguio e alto, um varapau, meio amalucado, desbocado, de sorriso fácil e bonachão. Um verdadeiro boa praça, filho de uma índia com um seringueiro e nascera na região da Baia das Onças em meados do segundo ciclo da borracha. 
 
Ah! Meus leitores, vocês que repousam comodamente numa verdejante planície que se aloja entre a Serra do Parecis e as águas bilingues do Mamoré, saibam que o delegado Feitosa, apesar da aparência estabanada, era osso duro de roer.
 
A malandragem do Tamandaré não tinha sossego. Uma simples menção ao seu nome soava como um assombro no meio da vadiagem. 
O homem era respeitado, mais que isso, era temido.
 
Da margem da ferrovia, se avistava a delegacia com sua única porta imponente e desbotada. No passado recente, fora um armazém da Rondobor.
 
O aroma de borracha defumada ainda impregnava suas velhas paredes sem reboco e se misturava aos cheiros de sujeira, suor e urina do corró localizado estrategicamente no fundo do prédio, onde não havia iluminação. 
 
Tudo isso mesclado ao odor   dos ratos e morcegos que habitavam o local desde a sua construção.  
 
O delegado não se importava com a catinga permanente do local. Suas baforadas mentoladas   em seu cachimbo de porcelana boliviana arejavam um pouco o ambiente fétido e meio emporcalhado da delegacia.
 
Feitosa portava um revólver niquelado, calibre trinta e oito e cano longo, permanentemente alojado no cós de suas largas pantalonas de brim.
 
O trabuco brilhava, engraxado na mesma intensidade que ele também fazia brilhar suas negras botas de couro curtido e sua bicicleta Hercules reluzente. O delegado desdenhava da velha viatura, uma rural Willys cor de cobre e enaltecia a elegância e a precisão de sua bicicleta. 
 
Cedo estava no batente da delegacia. Ouvia atento os depoimentos dos poucos agentes de plantão, despachava e se estatelava em sua velha cadeira que herdara de um amigo que fora chefe da estação ferroviária, onde permanecia sonolento até por volta das quatorze horas. 
Meus atentos leitores da Pérola do Mamoré, permaneçam mais atentos ainda, a vida pacata da cidade que nascera à sombra das seringueiras sofrerá um abalo com esse trágico acontecimento. Seu impacto reverberá durante anos no seio da comunidade, incrédula e assustada, com os olhos voltados solenemente para a Serra dos Parecis. 
 
Infelizmente não posso mudar o rumo dessa crônica, ela tem vida própria, apenas sigo o curso dos acontecimentos, assim como o Mamoré segue, as vezes manso, as vezes violento ao inescapável e caloroso abraço do Beni em Vila Murtinho. 
 
Findo o expediente naquele dia, o delegado Feitosa repassou os últimos informes, tomou mais um gole de café da velha e encardida garrafa térmica, presente de um fazendeiro do Beni, encostou a porta da delegacia e seguiu em sua bicicleta para seu sítio nas proximidades da Serra do Parecis, um pouco depois da entrada do Ramal Bom Sossego, em direção à Vila. 
 
Nessa tarde ensolarada de setembro, o delegado passou apressadamente em sua residência, colocou alguns mantimentos no bisaco, além de uma lanterna e outros cacarecos. Estava decidido a pernoitar no sítio e se o tempo ajudasse, possivelmente mataria uma paca no barreiro logo atrás do tapiri.
 
Feitosa seguiu pedalando despreocupadamente em direção ao seu sítio, ouvindo os gritos roucos dos guaribas no pé da serra, ecoando pela floresta que margeava a rodovia como se fossem descompassados bumbos gigantescos.
 
Fora os gritos dos primatas, a floresta banhava-se em calmaria, se enfeitava com os últimos raios solares e se preparava para a melodiosa sinfonia noturna dos seres que lhe habitava. Feitosa chegou à entrada do sítio, abriu a porteira e caminhou empurrando a bicicleta até o tapiri. 
 
Ao pisar no terreiro, um bando de jacutingas voou em direção às matas no pé da serra.  Feitosa estranhou a debandada das aves, nunca as vira nas redondezas do tapiri. Encostou a bicicleta no tronco de um ouricuri, olhou mais uma vez em direção das barulhentas aves e pressentiu que não estava sozinho. 
 
Feitosa ainda tentou sacar o revólver, mais uma das flechas lhe atravessou a mão, seguida de outras tão certeiras quanto a primeira, agora na região do espinhaço e nas pernas. Caiu lentamente de joelhos, incrédulo e já arquejando, sentiu o sangue morno se misturando com o mentolado do fumo na boca. 
 
Não esboçou mais nenhum movimento.  Apenas os   olhos vítreos e esmaecidos enxergaram muitas sombras surgindo por detrás do tapiri e se aproximando dele, como se fossem visagens gigantescas e curiosas.
 
Na manhã seguinte, seu corpo duro, frio e ainda emborcado foi encontrado pelos companheiros. A bicicleta banhada de orvalho vigiou as primeiras horas do seu sono eterno, o bisaco ainda com a lanterna, mantimentos e outros cacarecos também estava no local. 
 
A festa naquela noite foi grande e   assombrou até os guaribas nos confins da Serra dos Parecis.  O revólver do delegado Feitosa agora enfeitava o cós das coloridas vestimentas fabricadas com palha de buriti do chefe dos cabocos.
 
Desde essa tragédia, os moradores da Pérola do Mamoré adquiriram o costume de no final das tardes, a pé, em seus carros ou em suas bicicletas subirem a Serra dos Parecis, depois caminham por entre pedras e arbustos retorcidos até o mirante que fica em frente à entrada do ramal Bom Sossego. 
 
Enquanto observam o pôr do sol tingindo de amarelo queimado a imensidão da planície, os perolenses veem os últimos vestígios do tapiri do delegado Feitosa que ainda resistem ao avanço imponente das lavouras de soja na borda sinuosa da serra. 
 
Simon O. dos Santos – Contista & Cronista
Direito ao esquecimento

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