Vamos Chico Tomar Café - Por Simon Santos

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Não me peçam para escrever o que quer seja. Não sou desses escribas que escrevem por encomenda. Escrevo o que quero e quando quero, sou senhor supremo de minhas narrativas. 
 
Saibam vocês que a inspiração é uma rainha sem castelo, que anda livre, leve solta pelas vastas campinas do Berço do Madeira. Como sempre dizia minha mãe, você pediria sangue à barata? Impossível, barata não tem sangue, seu interior é revestido por uma gosma preguenta e amarelada. 
É assim que me sinto quando me pedem para escrever, sem sangue. 
 
Falando em sangue, vocês gostam de sangue? Então, vamos lá vampiros do Berço do Madeira.
 
Marcolino era marreteiro, chegou no auge da fofoca no garimpo do Periquitos. Por lá ficou poucos dias, enfadado com o barulho infernal dos mais de dez mil garimpeiros que disputavam palmo a palmo as cristas dos barrancos e as águas do Madeira, em busca do metal precioso. Naquele lugar, era matar ou morrer, pensou Marcolino, achou melhor não correr o risco.
 
Nem de matar e muito menos morrer, sem antes voltar ao Maranhão onde deixou a esposa com dois bacorinhos barrigudos e remelentos.
 
Recolheu o pouco que trouxera e seguiu para Vila Nova, na carroceria do primeiro caminhão que encontrara na BR-425. Mirrado, quase um Zé Ninguém, Marcolino sentiu na própria pele que não tinha tutano para disputar com os garimpeiros o que quer que fosse, muito menos as poucas mulheres que enfeitavam a fofoca. 
 
Um pouco do sonho de ficar rico que o acompanhou desde Bacabal, ficou enterrado na ribanceira do Madeira. 
 
O caminhão estacionou no centro de Vila Nova, nas proximidades do Bar e Mercearia Novo Progresso. Marcolino desceu, pagou o que devia ao motorista do caminhão e marchou em direção ao bar.
 
Foi recebido pelo proprietário que lhe serviu uma robusta dose de conhaque São João da Barra, enquanto lhe indicava a pensão do Manoel Cândido, que ficava um pouco mais abaixo, quase saindo do povoado, em direção ao garimpo.
 
Antes de encaminhar-se para a pensão, Marcolino perambulou um pouco pelo povoado, sem nenhum propósito, enquanto aguardava o anoitecer, que não tardou a chegar, envolto numa penumbra morna e empoeirada.
 
  Era mês de agosto, mês de cachorro louco.
 
Da Casa dos Malandros, Marcolino observava o entra e sai na pensão do Manoel Cândido. Levantou-se, pegou seus quase nada e caminhou lentamente em direção à pensão, sem perceber que estava sendo observado desde o momento que descera do caminhão no centro do povoado.
 
Era noite de lua cheia, noite de lobisomem.
 
Entrou, tomou assento e pediu um prato de sopa e uma dose de conhaque. Enquanto comia, fora informado pela mocinha que o atendia que a pensão estava cheia e no povoado, aquela era a única. 
 
Diante da inesperada informação, Marcolino pensou consigo mesmo enquanto tomava o resto da sopa, “agora tô num mato sem cachorro”. Não conhecia uma vivalma naquele fim de mundo, e momentaneamente ficou quieto, sentindo o leve digerir da sopa.
 
Lembrou-se dos bancos e dos tamboretes da Casa dos Malandros. Tomou outro conhaque e caminhou de volta para lá.
 
Com um único vão e coberta de palha, a casa ficava na praça da matriz, um pouco à direita da igreja, com seus tijolos nus e o São Francisco de Assis  no alto da Torre com os braços abertos abençoando o povoado e a matilha de cães que se aninhava aos pés da torre. 
 
O marreteiro percebendo que não havia outro jeito, escolheu o banco mais largo e reforçado e espichou-se. Ficou observando as estrelas por entre as palhas da cobertura da casa. e não percebeu quando a mão direita do Santo lançou seu manto protetor sobre a casa, instantaneamente, veio-lhe um sono tranquilo e reparador. 
 
Era sempre assim, após o desligamento do motor gerador de energia, por volta das vinte horas, um alarido de cães e gatos recobria o povoado. Todas as criaturas noturnas se agigantavam e se infiltravam pelos desvãos, becos e ruelas a perturbarem o sono dos aflitivos moradores.
 
Naquela noite em que Marcolino adormecia tranquilamente sob a proteção de São Francisco, o alarido foi ensurdecedor, era mês de agosto e noite de lua cheia, figuras misteriosas e tenebrosas se remexiam em suas tocas, salivando e farejando  cheiro de sangue.
 
Foi uma noite assombrosa, as pessoas não conseguiram dormir, o calor e a poeira insuportáveis do mês de agosto se misturavam com a fumaça morna soprada das queimadas, e envolvia o povoado deixando-o com um aspecto fúnebre e misterioso. 
 
Tosses secas e abafadas se misturavam aos cantos dos galos e ao uivo pavoroso de uma criatura embevecida pelo clarão da lua. Marcolino dormia indiferente ao clamor das pessoas e ao perigo que se aproximava calma e sorrateira da Casa do Malandros.  
 
A lua lançou seus últimos clarões sobre o povoado. A escuridão desceu mansamente seu manto deixando as criaturas mais enlouquecidas ainda. A sinfonia de uivos e latidos, contrastava com o sono tranquilo da matilha que se aninhara   aos pés da torre de São Francisco.
 
Sentindo os efeitos dos últimos raios do luar sobre corpo cabeludo, a criatura uivou loucamente e saiu em disparada em direção ao povoado. Dentro das casas cessaram todos os gemidos, tosses, pigarros e um silêncio sepulcral envolveu o Berço do Madeira. 
 
A criatura em fúria e esfomeada subiu a praça e correu em direção à   Casa dos Malandros, onde Marcolino dormia tranquilo. Com as órbitas esbugalhada e rosnando alto, a criatura saltou bruscamente sobre o marreteiro.
 
A fera embarrou violentamente contra o manto de São Francisco e caiu sobre a matilha que dormia ao pé da torre. Os cães, engalfinharam-se bravamente com a criatura que estrebuchava, sem conseguia alcançar e ferir nenhum deles. 
 
Os cães a expulsaram em direção ao garimpo dos Periquitos, e nunca mais foram vistos, nem a criatura, nem os cães, amarronzados como a túnica de São Francisco de Assis. 
 
Marcolino foi acordado logo cedo pelos ganidos de um filhote embaixo do banco, em que adormecera.  O acariciou, colocou no colo o cachorrinho de pele amarronzada com uma mancha cor de sangue embaixo do pescoço e seguiu para a pensão.
 
Vamos Chico tomar café. 
 
Simon O. dos Santos - Cronista
Direito ao esquecimento

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