Momento Lítero Cultural - Por Selmo Vasconcellos

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MÁRIO  BAGGIO – São Paulo, SP.

ENTREVISTA nº 718 – 27 de outubro de 2022.

 

Mário Baggio é jornalista. Nasceu em Ribeirão Claro-PR e mora há quarenta anos em São Paulo. Publicou 5 livros de contos: “A (extra)ordinária vida real” (2016), “A mãe e o filho da mãe (2017), “Espantos para uso diário” (2019), “Verás que tudo é mentira” (2020) e “Antes de cair o pano” (2022).

Publicou textos em várias revistas eletrônicas (Germina, Gueto e InComunidade, entre outras). Escreve semanalmente na revista Crônicas Cariocas.

Participou da “Antologia Ruínas” (2020), “Tanto mar entre nós: diásporas” (2021), Antologia de Contos da UBE (2022).

 

SELMO VASCONCELLOS - Quais as suas outras atividades, além de escrever?

MÁRIO BAGGIO -Eu me retirei do mercado corporativo em 2015. Desde então, a literatura tem sido a única atividade que ocupa meus dias. Tenho bastante tempo para ler, escrever, alimentar meu blog, estudar, observar a vida, colher material para meus livros.

 

SELMO VASCONCELLOS - Como surgiu seu interesse literário?

MÁRIO BAGGIO -Eu sou leitor desde criança, desde que aprendi a ler. Comecei com os gibis, passei para Monteiro Lobato, histórias de santos (adorava!) até chegar aos livros didáticos. Tive professores que, percebendo o meu gosto pelas letras, me abasteciam de livros nas férias. Mais tarde, no ginásio e no científico, passei a ter contato com literatura “para adultos”. O primeiro romance que li foi “Éramos seis”. Depois li Érico Veríssimo, Machado de Assis, José de Alencar, Eça de Queiroz, Aníbal Machado, Jorge Amado, e os estrangeiros Hemingway, Mario Puzo, best-sellers como “Papillon” e “O exorcista”. Só mais tarde, já na faculdade de Jornalismo, fui conhecer Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Ivan Angelo, Lygia Fagundes Telles, Rachel de Queiroz. Nunca mais larguei a literatura, que é meu maior prazer, para leitura e escrita.

A escrita surgiu ainda nos tempos do ginásio, quando escrevia poemas para as namoradas. Eu gostava também de escrever redações para as aulas de Português.  Com as redes sociais, há mais ou menos 10 anos, comecei a ver que as pessoas gostavam dos textos curtos que eu escrevia. Aí não parei mais. Criei meu blog em 2014 e publiquei meu primeiro livro em 2016.

  

SELMO VASCONCELLOS - Quantos e quais os seus livros publicados?

MÁRIO BAGGIO -Já publiquei 5 livros, todos de contos: “A (extra)ordinária vida real” (2016), “A mãe e o filho da mãe” (2017), “Espantos para uso diário” (2019), “Verás que tudo é mentira” (2020) e “Antes de cair o pano” (2022).

  

SELMO VASCONCELLOS - Qual (is) o(s) impacto(s) que propicia(m) atmosfera(s) capaz(es) de produzir poesias?

MÁRIO BAGGIO -Eu me considero contista, não poeta, embora escreva bastante poesia e tenha um livro não publicado com poemas. No meu blog (www.homemdepalavra.com.br) há uma seção de poesia e outra de prosa poética. Sou mais próximo da prosa, e a poesia entra nas brechas dessa prosa. Acho que a poesia está em tudo, na forma como eu vejo o mundo, na forma de abordar os temas sobre os quais desejo escrever. Às vezes o texto sai em forma de poema, outras vezes em forma de conto, eu não controlo muito bem isso. Penso como Ferreira Gullar: a poesia nasce do espanto, nasce do susto que sentimos quando abrimos os olhos de manhã e olhamos a vida.

 

SELMO VASCONCELLOS - Quais os escritores que você admira?

MÁRIO BAGGIO -Há vários. Entre os brasileiros clássicos, Machado de Assis e Graciliano Ramos são meus preferidos, sem esquecer Lima Barreto e Mário de Andrade. Dos contemporâneos, admiro muitíssimo Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Josué Guimarães, Luiz Vilela, Cinthia Kriemler, Sandra Godinho, Chico Lopes, Alê Motta, entre muitos outros. 

Entre os estrangeiros, cito Hemingway, Alice Munro, Dostoiévski, Julio Cortázar, Fernando Aramburu, Jorge Luis Borges, Silvina Ocampo, entre outros.

 

SELMO VASCONCELLOS - Qual mensagem de incentivo você daria para os novos poetas?

MÁRIO BAGGIO -Ler. Ler. Ler. Leiam os clássicos, descubram os modernos. Procurem, tenham curiosidade, tenham sede.

  

A PROCISSÃO DA NEGRA SANTA

 

Mas como pode ser essa Nossa Senhora

tão pequena, tão negra, tão africana,

parecendo que não foi acabada direito?

 

Marinês vê a serpente da procissão,

o andor da santa bamboleia nos ombros

dos quatro coroinhas pouco mais do que meninos,

aquela santa tão pretinha

chamando para o Salve Rainha

poderia ser a mãe de um povo da Guiné,

tão negra a pele, tão pretos os olhos.

 

Marinês no meio da multidão

toca o pano da santa,

quer pedir pelo Josué e pelo filho da Lucineide,

“Eia, pois, advogada nossa,

esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei”,

jura que vê uma lágrima de verniz

descendo no rosto de madeira negra,

seiva santificada,

Marinês é puro êxtase, “me arrebata, santa da minha cor!”

*****   

O BARRACO DA CEIÇÃO

 

Quatro cômodos num só barracão,

como é pequena a casa da Ceição!

O banheiro é separado,

que as necessidades são feitas em privado.

 

A mãe velhinha e o marido desempregado,

o filho ainda bebê, a filha com corpão-violão,

e o irmão que só cuida do penteado —

todos vivem ali no barraco da Ceição,

repartindo juntos o mesmo quadrado.

 

Pra se ter um pouco de alívio

é preciso se trancar no banheiro,

o vaso é a poltrona que falta na sala.

Como lá ninguém toma Activia,

gasta-se muito tempo naquele cantinho,

cagando e pensando na existência,

na eterna falta de dinheiro

e na sorte de se ter por perto

uma mulher como a Ceição, que só sabe sorrir,

e esse barracão, onde cabe um mundo inteiro.

***** 

PARTO

 

Quando você não tiver nada,

restará pelo menos a escrita.

Foi algo que você prometeu em público,

ao vivo:

escrever até morrer,

morrer se não escrever.

 

Se, por acaso,

até escrever for difícil,

quando nenhuma ideia lhe ocorrer,

nem nova nem velha,

abra a garganta e grite.

Coloque esse grito no papel.

Sei que é só um grito,

mas vale mesmo assim.

Preferível é gritar a se asfixiar.

 

À falta de algo melhor,

mais elaborado,

escreva um poema.

Um simples poema,

um poeminha,

uma pequena punção na altura do pescoço,

suficiente para aliviar o sufoco.

 

Funciona como uma cesariana:

o pequeno bastardo não sai por onde deveria,

nem como deveria,

mas sai.

Se você tiver sorte, ele vai respirar.

 

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