O que se viu ontem na Câmara dos Deputados não pode ser tratado como mera turbulência parlamentar. Foi um ponto de ruptura, uma amostra de como a democracia começa a ser corroída por dentro, silenciosamente, até que um dia se torna irreconhecível.
Pouco antes da votação que poderia cassar o mandato do deputado Glauber Braga (PSOL-RJ), o plenário se tornou palco de pancadaria, empurrões, agressões a jornalistas e uma operação de segurança que mais lembrava um estado de exceção do que o funcionamento normal da Casa Legislativa. Por um instante, parecia que 1964 nos alcançava de novo.
É preciso reconhecer: Glauber Braga errou ao se sentar na cadeira da Presidência como forma de protesto. O gesto ultrapassa o simbolismo e rompe com as regras do Parlamento. Assim como foi erro, muito mais grave, quando a extrema direita fez o mesmo, ocupando a mesa da Presidência em episódios anteriores. A diferença?
Quando a extrema direita ocupou ilegalmente a mesa, não houve corte de TV, não houve expulsão, não houve agressão, não houve jornalista arrastado, não houve operação de guerra. Houve tolerância. Impunidade. Silêncio. O episódio de ontem demonstrou, mais uma vez, que a mão que aplica a regra muda conforme o rosto do infrator.
E é justamente nessa seletividade que mora o risco: quando regras deixam de ser gerais e passam a ser instrumentos de coerção política, a democracia perde o chão.
Enquanto isso, avançava-se, às pressas, na votação de uma dosimetria penal mais leve para quem atentou contra o Estado Democrático de Direito. Um aceno evidente para a tese da impunidade e um recado perigoso: talvez, no Brasil, tentar derrubar um governo legítimo não seja assim tão grave.
Não se trata de defender Glauber Braga. Ele responder pelos seus atos faz parte do jogo democrático. Trata-se de denunciar o que está por trás da cortina: o cerco ao direito de informar e de fiscalizar o poder público.
Hugo Motta, presidente em exercício, determinou o corte do sinal da TV Câmara, mandou retirar jornalistas à força e ordenou ações que, segundo o chefe da segurança legislativa, “cumpriam ordens superiores”. Parlamentares foram impedidos de entrar; outros relataram agressões dentro da Casa.
Motta nega ter ordenado o corte da TV e a retirada de jornalistas. Mas se não ordenou, quem ordenou? Se alguém decide no lugar dele, preside pouco. Se decide e depois desmente, comunica insegurança. Há uma sombra sobre o poder quando o próprio presidente não sabe, ou não admite, quem apagou a luz.
Carol Nogueira, jornalista do UOL, levou uma braçada no pescoço no exercício do trabalho, assim como a produtora da TV Record, Debora Hanna que levou um soco no estômago e foi parar no departamento médico da Câmara, sem contar outras jornalistas que foram jogadas ao chão. Em plena Câmara dos Deputados, o lugar que deveria ser o mais seguro para qualquer profissional da imprensa.
O que se viveu ontem não é um incidente. É um sintoma. Um sintoma de que se consolida ali um Congresso disposto a testar os limites da legalidade, da transparência e do próprio Estado de Direito.
A democracia não é destruída apenas por tanques. Às vezes, ela é sufocada por empurrões, cortes de transmissão, ordens sem explicação e uma perigosa disposição de normalizar o inaceitável.
Os sinais estão dados. O que se faz com eles, ignorá-los ou enfrentá-los, definirá o país que teremos nos próximos anos. Política suporta gritos e crises, mas não sobrevive à escuridão.