Já está disponível na plataforma de streaming Netflix o documentário em três episódios “Congonhas: Tragédia Anunciada”, possivelmente um dos melhores já produzidos sobre o maior acidente aéreo da história do Brasil e da América Latina, ocorrido em 17 de julho de 2007. Muito bem produzido e dirigido por Angelo Defanti, o documentário faz um verdadeiro pente-fino no acidente do voo JJ3054 da TAM, que partiu de Porto Alegre (RS) com destino a São Paulo. A aeronave, um Airbus A320 de matrícula PP-MBK, ao aterrissar no aeroporto de Congonhas, saiu da pista e colidiu com um prédio da própria companhia aérea, matando instantaneamente 199 pessoas — 181 passageiros, duas crianças de colo, seis tripulantes — além de outras 12 vítimas que estavam no edifício atingido.
Uma tragédia absurda.
A série deixa claro — e o que é estarrecedor de assistir — que o acidente poderia ter sido evitado. Já havia, anteriormente, diversos alertas sobre problemas na pista do aeroporto de Congonhas, como falhas no sistema de drenagem, ausência de ranhuras na pista e, para piorar, a curta extensão das pistas do aeroporto, localizado em uma região densamente povoada, um típico caso de adensamento urbano ao redor.
Na época do acidente, o país enfrentava uma das maiores crises aéreas já registradas, com excesso de voos, chegando a comprometer até mesmo a logística de abastecimento das aeronaves. Já existiam preocupações operacionais registradas por pilotos e técnicos, alertando que, a qualquer momento, poderia ocorrer um acidente de grandes proporções.
Os depoimentos dos parentes das vítimas ajudam a mapear todo o drama vivido pelas famílias: desde o momento do aviso do acidente, passando pelo doloroso processo de reconhecimento dos corpos, até a dor e o sofrimento diante da tragédia. Depois, vem a busca por culpados. Quem punir? Quem foram os responsáveis?
O primeiro episódio começa com depoimentos fortes de pais que perderam filhos, irmãos e até famílias inteiras. Uma senhora, por exemplo, perdeu duas filhas e a mãe. Sua dor ao relatar como foi receber a notícia do acidente e, depois, buscar a identificação dos corpos é comovente.
O diretor demonstra sensibilidade ao construir uma narrativa em que a carga dramática do acidente é muito bem explorada, utilizando imagens de arquivo de reportagens, depoimentos de funcionários da TAM que estavam no prédio atingido, além de relatos de bombeiros que atuaram na operação de resgate na época.
O roteiro é resultado de uma pesquisa que combina o teor factual do acidente — sem se prender excessivamente aos detalhes técnicos, evitando cair no sensacionalismo — com a força dos depoimentos, intercalados por fotos das vítimas citadas, cenas tensas no aeroporto de Porto Alegre com famílias em pânico em busca de notícias, além da cobertura da imprensa desde o momento do anúncio do acidente.
Vale destacar o trabalho exemplar de pesquisa e curadoria das imagens de arquivo, que são habilmente entrelaçadas à narrativa, mantendo o ritmo dinâmico e envolvente, sem se tornar cansativo.
No segundo episódio, o documentário finalmente entra no terreno das consequências do acidente, mostrando as famílias sendo transportadas pela TAM para São Paulo para acompanhar o processo de reconhecimento dos corpos — realizado por meio de arcada dentária ou exames de DNA. É nesse momento que revisitamos uma das maiores, senão a maior, panes já registradas no sistema aéreo brasileiro: o chamado “apagão aéreo”, que surge como uma das causas estruturais do desastre.
É nesse contexto que entra em cena aquela que se tornaria a principal vilã da narrativa: a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), criada durante o governo Lula, então presidida interinamente por Denise Maria Ayres Abreu — ou simplesmente Denise Abreu. Personagem real, ela se tornou porta-voz contrária às denúncias e reclamações dos parentes das vítimas, sendo acusada de, supostamente, ter acobertado falhas visíveis na estrutura do aeroporto de Congonhas.
Durante o período mais crítico do caso, a Anac manteve uma postura defensiva em relação ao acidente. No entanto, o documentário, por meio de reportagens e relatórios oficiais, evidencia que a realidade era outra, revelando uma mobilização popular por justiça e pela responsabilização dos culpados.
Quando o título do documentário enfatiza “Tragédia Anunciada”, o diretor se apoia em uma investigação contundente que busca reconstituir os momentos que antecederam o acidente, além da apuração dos fatos já apontados em relatórios técnicos, que expunham falhas estruturais na pista e no sistema operacional do aeroporto, registradas em boletins específicos de segurança.
Um dos pontos mais discutíveis — e ao mesmo tempo surpreendentes — do documentário aparece no terceiro episódio, ao trazer Denise Abreu para dar seu próprio depoimento sobre os fatos ocorridos naquele período. Como uma das responsáveis pelo órgão regulador e fiscalizador da aviação civil brasileira, ela foi alvo de inúmeras críticas. Duas situações envolvendo seu nome se destacam — não vamos dar spoilers, mas envolvem uma comenda e um charuto. Vale a pena assistir.
Denise alega ter sido vítima de uma perseguição moral, que ela classifica como inapropriada e sensacionalista, diante das responsabilidades que exerceu à frente da Anac e do confronto direto com as famílias das vítimas.
Outro ponto relevante é o impacto que o acidente teve sobre o então presidente Lula, que enfrentou uma das maiores provações de seu governo. Parte da população — incentivada também pela cobertura intensa da imprensa — passou a responsabilizá-lo por manter uma equipe ineficiente à frente da Anac. A agência, diante da gravidade do “apagão aéreo”, parecia operar em um mundo paralelo, marcado por apatia, algo retratado com precisão pelo documentário.
Este é, sem dúvida, um trabalho bem executado, que contribui para o registro da memória histórica de um acidente que provocou mudanças sensíveis no sistema aéreo brasileiro. Assim como “Bateu Mouche”, documentário da HBO Max que resgatou outro trágico acidente aéreo e gerou grande comoção nacional, “Congonhas: Tragédia Anunciada” marca por sua relevância e impacto.
Ao final, somos apresentados à apuração dos fatos, às decisões tomadas contra os que foram considerados culpados e ao andamento dos processos movidos pelas famílias das vítimas — que, inclusive, precisaram criar uma associação para poder acionar a Justiça.
Quem viveu ou acompanhou de perto, pelos noticiários, cada momento da investigação, suas consequências, a mobilização popular (e até artística, com diversos artistas se solidarizando com os parentes das vítimas e protestando contra o caos aéreo) jamais esquecerá o voo JJ3054 da TAM — Porto Alegre/São Paulo.