Outra ocorrência se deu em Jataí (GO). Segundo o registro, o atirador se recusou a soprar o bafômetro após assumir que tinha ingerido bebida alcoólica. Na abordagem, filmada por policiais, ele disse ter tomado uma dose na fazenda. O motorista havia sido parado por dirigir em alta velocidade e ultrapassar em local proibido. Ele confirmou estar com arma e munição no carro.
Os agentes registraram apenas uma infração administrativa, justificando orientação da Polícia Civil de Jataí segundo a qual o encaminhamento do envolvido para autoridades policiais só deveria ocorrer se o CAC estivesse "visivelmente embriagado".
A Folha identificou ainda outros três casos de pessoas armadas que, ao serem paradas pela PRF, afirmaram ser CAC. No entanto, elas não apresentaram nenhum documento de comprovação.
"Existe pressão para que o órgão de controle não atue nessa fiscalização, que já é difícil com a norma atual. Quando amplia o entendimento de trajeto e horário, inviabiliza a fiscalização, ainda mais com clube de tiro funcionando 24 horas", afirma Michele dos Ramos, gerente de advocacy do instituto Igarapé.
"Com todas as brechas abertas pelo Exército a pedido do governo Bolsonaro, era esperado que todas pessoas com interesse em andar armadas, independentemente do motivo, fossem migrar com força para [o registro do] Exército, contaminando o grupo que de fato se interessa pelo esporte, caça ou coleção", complementa Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz.
De acordo com Langeani, qualquer crime ou ocorrência que gere uma investigação ou denúncia do Ministério Público é motivo suficiente para abertura de processo para cassação da licença para ter arma, seja na Polícia Federal ou no Exército.
Em nota, o Exército disse que a Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados atua de forma integrada com os órgãos de segurança pública. "Cada denúncia que provém dos órgãos de segurança pública, inclusive da PRF, é analisada à luz da legislação e existem casos de cancelamento [do registro de CAC] em função de irregularidades."
Segundo dados obtidos via LAI (Lei de Acesso à Informação), somente em 2021 foram 1.426 ocorrências na PRF por porte ilegal de armas contra 980 em 2018, antes do governo Bolsonaro. O aumento foi de 45% em três anos.
A Folha pediu à PRF dados do número de CACs autuados por porte ilegal de armas, mas a corporação disse não possuir filtro para esse tipo de informação consolidada.
Agentes da PRF ouvidos reservadamente dizem que há grande quantidade de casos de CACs identificados transitando com arma para outras finalidades que não a ida ao clube de tiro. Relatam ainda que muitos agentes temem fazer abordagens rígidas em CACs devido à forte pressão de membros do governo em favor dos atiradores, caçadores e colecionadores.
Um dos aliados do Planalto que atua mais diretamente com a PRF é o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), filho do presidente da República. Em setembro do ano passado, ele chegou a promover uma reunião entre o presidente do grupo armamentista Proarmas, Marcos Pollon, e o diretor-geral da PRF, Silvinei Vasques, para tratar das abordagens aos CACs.
Na ocasião, Eduardo criticou as ações da PRF e disse que atiradores e caçadores não precisam comprovar os trajetos feitos. Numa publicação nas redes sociais, ele também anunciou que a PRF editaria um manual para orientar os policiais sobre ações envolvendo CACs.
Uma normativa da PRF sobre o tema foi publicada dois dias após o encontro entre Eduardo, Pollon e Vasques.
Questionada, a corporação disse que foram expedidas orientações de como proceder em abordagem a CACs, mas que o material não poderia ser disponibilizado "por conta do dever legal de guardar sigilo sobre informações sensíveis que possam vir a ferir a segurança orgânica da instituição e de seus servidores".
A Folha teve acesso à nota técnica. Entre os principais pontos, ela estabelece que CACs que sejam flagrados com armas fora do caminho para o local de prática devem responder a uma mera infração administrativa.
A Justiça Federal de São Paulo deu uma liminar, em outubro do ano passado, suspendendo os efeitos desse trecho da nota técnica. A ação popular foi movida pelo deputado Ivan Valente (PSOL-SP). A União recorreu da decisão, mas o pedido foi negado pelo TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região).