O demônio adormece dentro de um copo - Por Simon Oliveira

 
 
O demônio adormece dentro de um copo e desperta quando sente o cheiro de álcool. Então, ele rodopia no ar, incendeia a besta-fera que há em nós e mergulha, sem restrição, no seio da família.
 
Cresci vendo meu pai bêbado. Quando criança eu gostava de vê-lo assim, pois era uma grande festa quando eu sentia em seus olhos enviesados o cheiro forte do álcool.
 
No dia a dia, meu pai era um homem carrancudo, às vezes áspero e até grosseiro, pouco falava comigo, raras vezes me colocava no colo ou me acariciava. Eu não entendia porque nos fins de semana, aquele homem que passava a semana inteira trabalhando e pouco me notava, se transformava em uma alegre e afetuosa criatura que rolava comigo na grama e me carregava em suas costas.
 
Cheguei a pensar que eu tinha dois pais diferentes, um para os dias da semana e o outro que me encantava aos sábados e domingos. Eu também não entendia a razão dos olhos de minha mãe estarem sempre marejando... Cheguei a desconfiar que ela também bebia, pois seus olhos se pareciam com os olhos do meu pai dos fins de semana.
 
A minha alegria dos fins de semana contrastava com a tristeza encravada nos olhos esmaecidos de minha mãe. Nos fins de semana, ela também era outra pessoa. Cheguei a pensar que teria duas mães, uma alegre e sempre ocupada durante a semana e a outra, cabisbaixa e introspectiva durante a planície das minhas alegrias domingueiras.
 
Nossa família se equilibrava nessa tênue linha que separava o céu do abismo. Um dia meu pai acordou o demônio que morava dentro
do “copo” e rodopiou no ar feito uma besta- fera. Era domingo. Meu pai chegou em casa muito mais bêbado do que de costume, com a voz embargada, mal se equilibrando nas pernas. Despejou sobre a família todas as dores, angústias e fraquezas de um homem vencido pelos delírios e fraturas que o álcool provoca.
 
Assustado, achei muito estranho. O homem afável dos meus sempre esperados fins de semana agora era uma sombra esquálida, fétida e maltrapilha, rastejando na grama feito uma lagartixa. Aquela cena me acompanha e me assombra ainda hoje.
 
Naquele dia, minha mãe e eu saímos de casa para nunca mais voltarmos. Eu, com o olhar fixo no gramado, vi meu pai agonizando, abraçado ao “demônio”, sob o olhar satisfeito e voraz de uma debochada besta-fera.
 
O álcool é um caco de vidro rasgando a pele. Nuns dias ele rasga pouco; noutros ele abre uma vala funda, um abismo.
 
 
Autor: Simon O. dos Santos – Texto extraído do livro “Causos e Crônicas do Berço do Madeira”, lançado em 2022.
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